segunda-feira, 21 de novembro de 2011

REPOSIÇÃO DA VERDADE






Por entender que este artigo, escrito por um médico, vem destruir a fantasia do João Gaspar Simões e tornar incompreensível o apadrinhamento da Clara Ferreira Alves, - anterior Directora da “Casa Fernando Pessoa”, -  e porque ele merece toda a divulgação possível, o coloco neste blogue, criado para homenagear o grande Poeta Universal que é o Fernando Pessoa




Fernando Pessoa,
alcoólico de grau
extremo?


O semanário Expresso de 5 de Março de 2001  publicou
um livro com a conhecida biografia de Fernando
Pessoa escrita por João Gaspar Simões, com
pretácio de Clara Ferreira Alves, em que este autor
considera o poeta vítima de grave alcoolismo,
atribuindo inclusivamente a sua morte a uma cólica
hepática devida a uma cirrose alcoólica: “um alcoólico
inveterado, vítima até às últimas consequências,
morais e físicas, do excesso da bebida,
...principiava a sentir a intoxicação
física que as permanentes bebedeiras
lhe iam provocando na constituição
débil... por anos de mau passadio,
de deambulação boémia de tasco
em tasco”. Esta narrativa de Gaspar
Simões sobre o alcoolismo de
Pessoa, de pendor claramente
pejoratívo, fantasioso, e caluniador
assim como a nomenclatura médica
completamente disparatada da causa
da sua morte, passaram, desde cedo,
a macular o nome do poeta, de forma
indelével e vulgarizada.

Um estudo sobre o tema

Foi a evidente falta de fundamentação
desta opinião, claramente malévola e
infundada, que me levou a efectuar
um trabalho de investigação
intitulado “O Hábito de Beber no
Contexto Existencial e Poético de
Fernando Pessoa”, com que concorri
ao Grande Prémio Bial de Medicina
de 1994, tendo sido premiado, por
um Júri de 5 catedráticos das nossas
Faculdades de Medicina, entre 49
concorrentes, para além dos dois
Primeiros Prémios, com uma das 4
Menções Honrosas. Posteriormente
a Fundação Bial lançou uma edição
desse meu livro que foi reeditado
em 2002 pela editora Livros
Horizonte, com o título “Fernando
Pessoa - A Penumbra do Génio”,
em que desenvolvo o mesmo
tema. Aproveito para revelar que
as ilações deste meu trabalho
tiveram a aprovação expressa de
numerosos e prestigiados escritores
pessoanos, como José Blanco, autor
do seu prefácio, Eduardo Lourenço.
Teresa Rita Lopes, Moitinho de
Almeida, Robert Bréchon, Richard
Zenith, Manuela Nogueira Murteira,
Sobrinho Simões, entre outros.

Depoimentos contrários
a um alcoolismo imoderado

O primeiro passo para investigar a
veracidade das estranhas deduções de
Gaspar Simões, seria necessariamente,
compará-las com outras informações
provenientes da larga convivência do
poeta com os seus contemporâneos
mais chegados, tanto mais que
Gaspar Simões só morou em Lisboa
nos últimos 3 meses da sua vida.
assim, encontramos numerosos
testemunhos de pessoas que
conviveram com Fernando Pessoa
durante largos espaços de tempo,
afirmando, sem sombra de dúvida,
que embora bebendo um pouco,
talvez para manter a inspiração
poética e a dedicação ao trabalho
comercial, nunca foi visto com os
mínimos sinais de excesso de ingestão
alcoólica, mantendo invariavelmente
um porte impecável, afável, esmerado
respeitável e distinto.
Freitas e Costa, primo de Pessoa
escreveu um livro intitulado “Notas
a uma biograÍìa romanceada” em
que contesta desenvolvidamente os
exageros de Gaspar Simões sobre o
alcoolismo do poeta.
Jaime Neves, médico, seu primo,
perguntou um dia a Henriqueta
Madalena, irmã do poeta: tu que falas
com toda essa gente, porque não
lhes dizes que nunca ninguém o viu
embriagado?
Augusto Ferreira Gomes, seu amigo
e companheiro de longa data,
escreveu: “Bebia muito bem. Daí
porém ao abandalhamento como
quer o seu biógrafo, talvez muito
lamentoso de que ele não tivesse
acabado numa valeta como o põe,
porque isso lhe calhava mal ao jeito
do personagem que criou, meu Deus
que diferença!... e se nunca foi o
alcoólico vencido pelo vício, como
ele também quer muito menos foi
o homem débil que se deixava levar
pelos acontecimentos”.
Também os seus patrões Moitinho
de Almeida, pai e filho, e Martins da
Hora, assim como a sua colega de
trabalho, Maria Ferreira do Amaral,
todas pessoas com quem conviveu
longos anos, são peremptórias em
afirmar a sua permanente eficiência
e a sua constante aparência de
sobriedade, dignidade e compostura.
Mas mesmo que se admita que
Fernando Pessoa bebia com algum
excesso, deveria ser considerado,
pela caracterização moderna
do alcoolismo, apenas como um
bebedor moderado, possuidor
de tolerância sem dependência,
isto é, sem sinais psíquicos, quer
por consumo excessivo de álcool,
quer por abstinência. Por outro
lado, também não se encontra
nele evidência de sinais orgânicos
dependentes do alcoolismo, como
desnutrição, insuficiência hepática, ou
sintomas neurológicos, (visíveis nas
fotografias como magreza acentuada
e aumento de volume do abdómen
ou detectáveis em alterações
caligráficas). Alem de que a sua
produção literária nos últimos anos e
meses da sua vida, pela sua extensão,
genialidade e estilo (incluindo a
sua grande obra “A Mensagem”),
representa prova iniludível da
conservação de completa integridade
física e psíquica.

O factor simulação

Uma faceta que com certeza
contribuiu para a fama de alcoólico
de Fernando Pessoa foi a sua
tendência, várias vezes confessada
ao longo de toda a sua vida e da sua
obra, de um pendor especial para
a blague e para a encenação: “...
Desde que tive consciência de mim
próprio, apercebi-me que tinha uma
tendência inata para a mistificação,
Para a mentira artística”, como
exprime no seu verso:” O poeta é um
fingidor...”. E exibiu esta tendência
em numerosos passos da sua
poesia, assim como na repetição de
episódios de simulação de excessos
alcoólicos, como na desculpa de que
estava embriagado quando satirizou
o acidente de Afonso Costa, a
fotografia a beber numa taverna com
o dístico “Em flagrante delitro”, as
imitações de ébrio ao chegar a casa
perante os sobrinhos, a desculpa de
que estava bêbado para não receber
uma visita, o cumprimento para
uns familiares - sou o vosso primo
bêbado, etc. parecendo até divertiria
imenso a espalhar a fama de
viciado pelo álcool, com que brindou
os seus contemporâneos e futuros
admiradores e detractores.

A causa da morte de Fernando
Pessoa

Em 29 de Novembro de 1935, uma
sexta-feira, ao anoitecer, estando
em sua casa na Rua Coelho da
Rocha, Pessoa teve uma súbita e
intensa dor abdominal, sendo pouco
depois levado em ambulância para
o Hospital de S. Luís dos Franceses,
onde faleceu no dia seguinte, sábado,
por volta das 20 horas.
Talvez por ser fim de semana não
foi efectuado Boletim Clínico, sendo
apenas registado o seu internamento
no livro de “Entradas e Saídas,
onde constam as respectivas datas
de admissão e de falecimento, os
honorários, o nome do Dr. Jaime
Neves como médico assistente (o
médico do hospital talvez estivesse de
folga), assim como o diagnóstico de
“Cólica Hepática”, mas não a causa da
morte (registada na 5" Conservatória
do Registo Civil de Lisboa como
“Obstrução intestinal”).
A primeira divulgação de “Cólica
Hepática devida a Cirrose Alcoólica”,
como causa da morte de Pessoa,
aparece na biografia escrita por
Gaspar Simões, sem que se perceba
como ele chegou a esta conclusão,
visto que tal denominação não tem
nenhum sentido em terminologia de
clínica médica. Assim, a cólica hepática
deve-se a litíase (pedra) da vesícula,
não tendo qualquer conexão com a
cirrose alcoólica e por outro lado, nem
uma nem outra destas situações (nem
a obstrução intestinal), na ausência
de complicações, são causa de morte
em 24 horas. Daí que tenhamos de
admitir que se esta dedução partiu
do Dr. Jaime Neves, ou ele não
tinha formação de clínico ou as suas
palavras foram mal interpretadas.
As entidades que actualmente podem
ser consideradas no diagnóstico
diferencial de um quadro de dor
abdominal aguda, seguida de morte
quase imediata como aconteceu
com Fernando Pessoa, são muito
numerosos, embora se possa suspeitar
de pancreatite aguda necrosante,
por poder ocorrer em casos de
alcoolismo mesmo moderado e não
necessariamente extremo, como o
que pretenderam atribuir ao poeta,
mas também devido a outras causas
como litíase biliaar hiperlipémia e
mesmo sem causa aparente
(forma idiopática). No entanto, outras
causas a ponderar permite o mesmo
quadro poderiam ser por exemplo,
rotura de aneurisma da aorta, isquémia
mesentérica ou lnfarto posterior
do miocárdio, de modo que apenas
se pode afirmar actualmente, ser
absolutamente impossível determinar
com certeza, qual a entidade clínica
responsável pela morte de Fernando
Pessoa.

Conclusão

O ultrajante e fictício enxovalho de
alcoólico em último grau, lançado sobre
o nosso maior poeta da modernidade,
provavelmente originado numa
espécie de despeito contra a sua
impressionante mentalidade, repleta
de genialidade, ironia e altivez, já não
é praticamente susceptível de ser
apagado completamente, por ter
sido aceite por uma imensidade de
cultores e pelo público em geral e
continuar a ser divulgado com deleite
pela comunicação social. Contudo,
justificam-se, pelo menos, as tentativas
da criação no ambiente cultural
português, de correntes de opinião,
destinadas a impedir a ampliação desse
aviltante e infundado estigma , não só
como acto de justiça para com a
gloriosa memória do poeta, como de
respeito pela sua qualidade de agente
incomparável do engrandecimento
da identidade nacional.


Jornal Português de Gastrenterologia
Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia

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