domingo, 23 de julho de 2017

FAZ HOJE 107 ANOS


IN ARTICULO MORTIS

Que nos importa que a lua morta tenha ou não tenha traços
Do antigo mundo que viveu rindo?
Que seja cinza o que era calor ao calor dos nossos braços?
De nada nos serve... Fechemos os olhos, cruzemos os braços.
E desesperemos, sorrindo.

A vida é pouco e a dor é muito. Ao luar e à noite esquecemos
O nosso ser de sob o o sol;
E já que a corrente nos leva silente, abandonemos os remos;
E visto, o falar a acção nos lembrar, calemo-nos, escutemos;
Talvez cante o rouxinol.

E daí quem sabe na noite o que cabe? Da solidão infinda
Talvez raie um sol e um dia,
E à barca que erra... talvez uma terra lhe espere obscura a vinda.
Talvez não seja o rouxinol que cante. Esperemos ainda,
E talvez seja a cotovia.

FERNANDO PESSOA, 23 DE JULHO DE 1910


Sem comentários: