domingo, 12 de janeiro de 2014

FAZ HOJE 87 ANOS



Tu, Caeiro, meu mestre, qualquer que seja o corpo
Com que vestes agora, distante ou perto, a essência
Da tua alma universal localizada,
Do teu corpo divino intelectual...

Viste com a tua cegueira perfeita, sabes o não ver...
Porque o que viste com os teus dedos materiais e admiráveis
Foi a face sensível, e não a face fisiognómica das coisas
Foi a realidade, e não o real.
Porque a verdade que é tudo é só a verdade que há em tudo
E a verdade que há em tudo é a verdade que o excede!
É à luz que ela é visível,

E ela só é visível porque há luz.
Ah, sem receio!
Ah, sem angústia!
Ah, sem cansaço antecipado da marcha
Nem cadáver velado pelo próprio cadáver na ideia
Nas noites em que o vento assobia no mundo deserto
E a casa onde durmo é o túmulo de tudo,
Nem o sentir-se morto impossivelmente sentindo-se cadáver,
Nem a consciência de não ter consciência dentro de tábuas e chumbo,
Nem nada...
Olho o céu de dia e olho o céu de noite
E este universo 'sférico e côncavo
Vejo-a como uma esfera dentro da qual vivemos,
Limitada porque é a parte de dentro
Mas com estrelas e o sol rasgando o visível
Por fora, para o convexo que é infinito...

Gritai de alegria, gritai comigo, gritai,
Coisas cheias, sobre-cheias,
Que sois minha vida turbilhonante...
Eu vou sair da esfera oca
Não por uma estrela, mas pela luz de uma estrela -
Vou para o espaço real...
Que espaço cá dentro é espaço de estar fechado
E só parece infinito por estar fechado muito longe...
Muito longe em pensá-lo.

A minha mão está já no puxador-luz.
Vou abrir com um gesto largo,
Com um gesto autêntico e mágico,
A Porta para o Convexo,
A Janela para o Informe,
A Razão para o maravilhoso definitivo.

Vou poder circum-navegar por fora este dentro
Que tem as estrelas no fim, vou ter o céu
Por baixo do sobrado curvo -
Tecto da cave das coisas reais,
Da abóbada nocturna da morte e da vida...

Vou partir para FORA,
Para o Arredor Infinito,
Para a circunferência exterior, metafísica,
Para a luz por fora da noite,
Para a Vida-morte por fora da morte-Vida.

E aí, no Verdadeiro,
Tirarei os astros e a vida da algibeira como um presente ao Certo,
Lerei a Vida de novo, como uma carta guardada
E então, com luz melhor, verei bem a letra e saberei.

O cais está cheio de gente a ver-me partir.
Mas o cais é à minha volta e eu encho o navio -
E o navio é cama, caixão, sepultura -
E eu não sei o que sou pois já não estou ali...

E eu, que cantei
A civilização moderna, aliás igual à antiga,
As coisas do meu tempo só porque esse tempo foi meu,
As máquinas, os motores,
Vou em diagonal a tudo para cima.
Passo pelos interstício de tudo,
E como um pó sem ser rompo o envólucro
E partirei, globo-trotter do Divino,
Quantas vezes, quem sabe?, regressando ao mesmo ponto
(Quem anda de noite que sabe do andar de noite?)
Levarei na sacola o conjunto do visto -
O céu e de estrelas , e o sol em todos os modos,
E todas as estações e as suas maneiras de cores,
E os campos, e as serras, e as terras que cessam em praias
E o mar para além, e para além do mar que há além.

E de repente se abrirá a Última Porta das coisas,
E Deus, como um Homem, me aparecerá por fim.
E será o Inesperado que eu esperava -
O Desconhecido que eu conheci sempre -
O único que eu sempre conheci.


ÁLVARO DE CAMPOS, 12 DE JANEIRO DE 1927



Sem comentários: