sábado, 25 de janeiro de 2014

FAZ HOJE 102 ANOS



Muito longe, muito longe...
Nem tu sabes, filha
Como era longe, tão longe
Aquela % ilha
Onde eu vivi, tão sonhando,
Uma vida que não tive
E onde Essa cujo olhar brando
Foi sonho meu, inda vive...
Nem tu sabes como é longe
Num Oriente de outra Terra
Essa ilha onde eu fui monge!
Ao longe havia uma serra
Aquém erra o olhar sombrio
De arvoredos de outro ser
Corria por ele um rio
Com outro modo de correr
Foi aí que eu aprendi,
Foi aí que eu fui buscar
O sonho que busco em ti
E que em ti não posso achar...
É por ter ali vivido
Que não posso ter amor
A quanto há entre o ruído
Deste mundo em meu redor.
Por isso quando eu te olho
Não penso em ti, mas evoco,
Outro amor que em mim desfolho.
Por isso nunca te toco,
Por isso vivo sozinho
Alheadamente tristonho...
Não sei construir um ninho
Senão com penas de sonho
Das que há naquela ilha
Que amei antes de viver...
Não me olhes... Eu sonho, filha...

Mas tu tens às vezes gestos,
Modos rápidos de olhar,
Leves (...) lestos
Que não tens consciência
Que lembram gestos de Aquela
Que viveu comigo além
Naquela ilha que é bela
Pelo Mundo que não tem
E eu pergunto de repente
Se tu serás ela, e como
Eu próprio sejas doente
De universo... E um vago assomo
De querer-te no ignorar-te
De te amar até esquecer-te
Torna-se toda a minha arte...
Ah o tédio que este céu verte!


FERNANDO PESSOA, 25 DE JANEIRO DE 1912



Sem comentários: