Eu no tempo não choro que me leve
A juventude, o já encanecer
A cabeça que pouco ainda esteve
Sob o sol alto e a tarde a
arrefecer.
Nem choro que não me ames, que
faleça
O amor que vi em ti, que também haja
Uma tarde do amar, que desfaleça
E a noite fique, (...)
Mais que tudo choro já não te amar,
Sim, choro a tragédia de não ser o
mesmo na alma,
De te ser infiel sem infidelidade,
De me ter esquecido de ti sem
propriamente te aborrecer.
Não é o tempo ido em que te amei que
choro.
Choro não te amar já por isso ser
natural.
Choro ter-te esquecido, choro não me
poder lembrar
Com saudade do tempo em que te amei.
Isso é que choro, sim, com as
verdadeiras lágrimas
Que contêm em si os piores mistérios
-
A morte essencial das cousas,
O acabar das almas, mais grave que o
dos corpos,
O abismo onde a única esperança é
poder haver Deus
E um outro sentido desconhecido a
tudo que se teve e se foi
Um outro lado, nem côncavo nem
convexo à curva da vida.
FERNANDO PESSOA, 29 DE OUTUBRO DE 1920
Sem comentários:
Enviar um comentário