Sim, sou eu, eu mesmo ,tal qual
resultei de tudo,
Espécie de acessório ou
sobresselente próprio,
Arredores irregulares da minha
emoção sincera,
Sou eu aqui em mim, sou eu.
Quanto fui, quanto não fui, tudo
isso sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo
isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a
mesma saudade em mim.
E, ao mesmo tempo, a impressão, um
pouco inconsequente,
Como de um sonho formado sobre
realidades mistas,
De me ter deixado a mim num, banco
de carro eléctrico,
Para ser encontrado pelo acaso de
quem se lhe ia sentar em cima.
E, ao mesmo tempo, a impressão, um
pouco longínqua,
Como de um sonho que se quer lembrar
na penumbra a que se acorda,
De haver melhor em mim do que eu.
Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um
pouco dolorosa,
Como de um acordar sem sonhos para
um dia de muitos credores,
De haver falhado tudo como tropeçar
no capacho,
De haver embrulhado tudo como a mala
sem as escovas.
De haver substituído qualquer coisa
a mim algures na vida.
Baste! É a impressão um tanto ou
quanto metafísica,
Como o sol pela última vez por sobre
a janela da casa a abandonar,
De que mais vale ser criança que
querer compreender o mundo -
A impressão de pão com manteiga e
brinquedos
De um grande sossego sem Jardins de
Prosérpina,
De uma boa vontade para com a vida
encostada de testa à janela,
Num ver chover com som lá fora
E não as lágrimas adultas de custar
a engolir.
Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o
trocado,
O emissário sem carta nem
credenciais,
O palhaço sem riso, o bobo com o
grande fato de outro,
A quem tinem as campainhas na cabeça
Como chocalhos pequenos de uma
servidão em cima.
Sou eu mesmo, a charada sincopada
Que ninguém da roda decifra nos
serões de província.
Sou eu mesmo, que remédio!...
ÁLVARO DE CAMPOS, 6 DE AGOSTO DE
1931
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