Mas não e só o cadáver
Essa pessoa horrível que não é
ninguém,
Essa novidade abísmica do corpo
usual,
Esse desconhecido que aparece por
ausência na pessoa que conhecemos,
Esse abismo cavado entre vermos e
entendermos -
Não é só o cadáver que dói na alma
com medo,
Que põe um silêncio no fundo do
coração,
As coisas usuais externas de quem
morreu
Também perturbam a alma, mas com
mais ternura no medo.
Sejam de um inimigo,
Quem pode ver sem saudade a mesa a
que ele sentava,
A caneta com que escrevia?
Quem pode ver sem uma angústia
própria
A espingarda do caçador desaparecido
sem ela para alívio de todos os montes?
O casaco do mendigo morto, onde ele
metia as mãos (já ausentes para sempre) na algibeira,
Os brinquedos, horrivelmente arrumados
já, da criança morta,
Tudo isso me pesa de repente no
entendimento estrangeiro
E uma saudade do tamanho do espaço
apavora-me a alma...
ÁLVARO DE CAMPOS, POEMA SEM DATA
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