segunda-feira, 8 de outubro de 2018

FAZ HOJE 99 ANOS





TRAMWAY

Aqui vou eu num carro eléctrico, mais
Umas trinta ou quarenta pessoas,
Cheio (só) das minhas ideias imortais
(Creio que boas).

Amanhã elas, postas em verso, serão
Por toda a Europa, por todo o mundo (quem sabe?)
Triunfo, meta, início, clarão
Que talvez não acabe.

E quem sobe? Que sente? O que vai a meu lado
Só sente em mim que sou o que, estrangeiro,
Tem o lugar da porta, e do extremo, apanhado
Por quem entra primeiro.

Que o que vale são a ideias que tenho, enfim,
O resto, o que aqui está sentado, sou eu,
Vestido, visual, regular, sempre em mim,
Sob o azul do céu.

Ah, Destino ou deuses, dai-me ao menos o siso
Ao que em mim pensa a vida de ser um profundo
Senso essencial, mas certeiro e conciso
Da vida e do mundo.

Sei, sob o céu que é que toca as minhas ideias,
Sob o céu mais análogo ao que penso comigo
Que este carro que vai com as bancadas cheias
Para onde eu sigo.

E o ponto de absurdo de tudo isto qual é?
Onde é que está aqui o erro que sinto?
A minha razão enternecida aqui perde pé
E pensando minto,

Mas a que verdade minto, que ponte
Há entre o que é falso aqui e o que é certo?
Se o que sinto e penso, nem sei sequer como o conte
Se o que está a descoberto

Agora no meu meditar é uma treva e um abismo,
Que hei-de fazer da minha consciência dividida?
Oh, carro absurdo e irreal, onde está quanto cismo?
De que lado está a vida?

FERNANDO PESSOA, 8 DE OUTUBRO DE 1919


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