Aqui vou eu num carro eléctrico, mais
Umas trinta ou quarenta pessoas,
Cheio (só) das minhas ideias imortais
(Creio que boas).
Amanhã elas, postas em verso, serão
Por toda a Europa, por todo o mundo (quem sabe?)
Triunfo, meta, início, clarão
Que talvez não acabe.
E quem sobe? Que sente? O que vai a meu lado
Só sente em mim que sou o que, estrangeiro,
Tem o lugar da porta, e do extremo, apanhado
Por quem entra primeiro.
Que o que vale são a ideias que tenho, enfim,
O resto, o que aqui está sentado, sou eu,
Vestido, visual, regular, sempre em mim,
Sob o azul do céu.
Ah, Destino ou deuses, dai-me ao menos o siso
Ao que em mim pensa a vida de ser um profundo
Senso essencial, mas certeiro e conciso
Da vida e do mundo.
Sei, sob o céu que é que toca as minhas ideias,
Sob o céu mais análogo ao que penso comigo
Que este carro que vai com as bancadas cheias
Para onde eu sigo.
E o ponto de absurdo de tudo isto qual é?
Onde é que está aqui o erro que sinto?
A minha razão enternecida aqui perde pé
E pensando minto,
Mas a que verdade minto, que ponte
Há entre o que é falso aqui e o que é certo?
Se o que sinto e penso, nem sei sequer como o conte
Se o que está a descoberto
Agora no meu meditar é uma treva e um abismo,
Que hei-de fazer da minha consciência dividida?
Oh, carro absurdo e irreal, onde está quanto cismo?
De que lado está a vida?
FERNANDO PESSOA, 8 DE OUTUBRO DE 1919
Sem comentários:
Enviar um comentário