quarta-feira, 13 de agosto de 2008

O MENINO E A SUA MÃE




O MENINO DA SUA MÃE




No plaino abandonado

Que a morna brisa aquece,

De balas traspassado

- Duas de lado a lado -,

Jaz morto e arrefece.



Raia-lhe a farda o sangue.

De braços estendidos,

Alvo, louro, exangue,

Fita com olhar langue

E cego os céus perdidos.



Tão jovem! que jovem era!

(Agora que idade tem?)

Filho único, a mãe lhe dera

Um nome e o mantivera:

"O menino da sua mãe".



Caiu-lhe da algibeira

A cigarreira breve.

Dera-lha a mãe. Está inteira

E boa a cigarreira.

Ele é que já não serve.



De outra algibeira, alada

Ponta a roçar o solo,

A brancura embaínhada

De um lenço... Deu-lho a criada

Velha que o trouxe ao colo.



Lá longe, em casa, há aprece:

"Que volte cedo e bem!"

(Malhas que o Império tece!)

Jaz morto e apodrece

O menino da sua mãe.



Fernando Pessoa (publicado em Maio de 1926)

(A MÃE DO SEU MENINO)



UN SOIR À LIMA (excertos)




Vem a voz da radiophonia e dá

A notícia num arrastamento vão:

"A seguir

Un soir à Lima."



Cesso de sorrir...

Pára-me o coração...



E, de repente,

Essa querida e maldita melodia

Rompe do aparelho inconsciente...

Numa memória súbita e presente

Minha alma se extravia...



O grande luar de Africa fazia

A encosta arborizada reluzente.



A sala em nossa casa era ampla, e estava

Posta onde, até ao mar, tudo se dava

À clara escuridão do luar ingente...

Mas só eu à janela.

Minha mãe estava ao piano

E tocava...

Exactanente

Un soir à Lima.



Meu Deus, que longe, que perdido, que isso está!

Que é do seu alto porte?

Da sua voz continuamente acolhedora?

Do seu sorriso carinhoso e forte?

O que hoje há

Que mo recorda é isto que oiço agora:

"Un soir à Lima".

Prossegue na radiophonia

A mesma, a mesma melodia

O mesmo
Un soir à Lima.



Seu cabelo grisalho era tão lindo

Sob a luz.

E eu que nunca pensei que ela morresse

E me deixasse entregue a quem eu sou!

Morreu, mas eu sou sempre o seu menino.

Ninguèm é homem para a sua mãe!



E inda através de lágrimas não falha

À memória que tenho

O recorte perfeito da medalha

Daquele perfeitíssimo perfil.

Chora, ao lembrar-te, mãe, romana e já grisalha,

Meu coração teu e infantil.

Vejo teus dedos no teclado e há

Luar lá fora eternamente em mim.

Tocas em meu coração, sem fim,

Un soir à Lima.

............................................................



Não ter aqui numa gaveta

Não ter aqui numa algibeira,

Fechada, havida, completa,

Essa cena inteira!

Não poder arrancar

Do espaço, do tempo, da vida

E isolar

Num lugar da alma onde ficasse possuída

Eternamente

Viva,quente,

Essa sala, essa hora,

Toda a família e a paz e a música que há

Mas real como ali está

Ainda, agora,

Quando, mãe, mãe, tocavas

Un soir à Lima.



Mãe, mãe, fui teu menino

Tão bem dobrado

Na sua educação

E hoje sou um trapo que o Destino

Fez enrolado e atirado

Para um canto do chão.



Jazo, mesquinho,

Mas ao meu coração

Sobe, num torvelinho

A memória de quanto ouvi do que há

No que há de carícias, de lar, de ninho,

Ao relembrar o ouvi, hoje, meu Deus, sòzinho,

Un soir à Lima.



Onde é que a hora, e o lar e o amor está

Quando mãe, mãe, tocavas

Un soir À Lima

.................................................................................



Mas, mãe, não haverá

Um Deus que me não torne tudo vão,

Ou outro mundo em que isso agora está?

Divago ainda: tudo é ikusão.

Un soir à Lima.



Quebra-te coração...



Fernando Pessoa 17/9/35



1 comentário:

Unknown disse...

Olá Pai!
Muitos parabéns pela tua fantástica iniciativa ao criares este Blog, que irá ensinar a quem quiser aprender o quão foi, é e será importante o Fernando Pessoa e a sua vasta obra para os portugueses no mundo e para a sua literatura!
Xi-coração apertado!