quinta-feira, 31 de julho de 2008

ANIVERSÁRIO

No tempo em que festejavam o dia dos neus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até o eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa como uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saude de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter as esperanças,já não sabia ter esperanças...
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim mesmo,
O que fui de coração e parentesco,
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui _ ai, meu Deus, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
E estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas - doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado -,
As tia velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos,
Duro.
Somam-se-me dias,
Serei velho quando for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

(15/10/1929)

2 comentários:

sofia disse...

Não há nada mais bonito e altruísta do que partilhar os nossos sonhos! E este é um sonho de alto valor "nutritivo"! Agradeço-te em nome do mundo o teres tomado esta iniciativa. PARABÉNS e os desejos de uma muito longa vida para este projecto (sim, porque agora estamos todos sedentos da obra do grande Fernando Pessoa). Até ao próximo poema!!!!!!

Nitos disse...

Muito bem. Que fique registado que este Blog foi todo construído pelo Sr. Fernando Ranito. Muitos parabéns pelo feito!
Continuamos a aguardar desenvolvimentos.
Abraço