quarta-feira, 15 de outubro de 2008

OS HETERÓNIMOS II

É impossível falar de Fernando Pessoa, sem abordar o inultrapassável tema dos Heterónimos.

Quando em 1942 a editorial Ática, como refiro mais atrás, começou a publicar uma colecção intitulada, "Obras Completas do Fernando Pessoa", para o público anónimo, foi, decerto muito surpreendente que o 2º, o 3º e o 4º volumes, aparecessem como tendo a autoria, respectivamente, de Álvaro de Campos ("Poesias"), de Alberto Caeiro ("Poemas") e de Ricardo Reis ("Odes"). Muitos terão perguntado, na ignorância da obra do grande poeta,natural nessa época : então, é Fernando Pessoa, ou é Álvaro de Campos, ou é Alberto Caeiro ou é Ricardo Reis?

Recordemos que, até essa altura, apenas tinha sido editado um único livro do Fernando Pessoa: a "Mensagem", em 1934. Havia muitos poemas dispersos por inúmeras revistas de arte, mas a difusão dessas publicações era, como ainda hoje continua a ser, restrita a um pequeno círculo de intelectuais.

Essa surpresa, como também já referi, não só, não foi esclarecida pela crítica, com a publicação, sucessiva, de diversas Obras dedicadas ao Poeta, como ainda foi adensada, intelectualizada, levando para o debate universitário aquilo que, pela sua simplicidade de base, deveria ter merecido uma abordagem simples e clara, para uso do grande público leitor. Criou-se e alimentou-se um mistério que nunca mais abandonou o estudo da Obra do F. Pessoa por todo Mundo: dos Estados Unidos ao Japão, ou à China, passando por todos os continentes. Quando, em 1988, foi organizado, em Lisboa, um Congresso Internacional, na comemoração do centenário do nascimento do Poeta, que reuniu os maiores especialistas das mais variadas nacionalidades, a maioria das comunicações apresentadas, abordavam o tema dos Heterónimos… Em meu entender foi a primeira vez que ultrapassaram alguns tabus, de que, mais adiante, darei conta.

Dizia o Fernando Pessoa: “
O Mito é o nada que é Tudo”. O Mito, aqui, é aquilo a que toda a gente chama “a famosa carta dos Heterónimos”. Uma carta escrita pelo Poeta, em 13 de Janeiro em 1935, para o Adolfo Casais Monteiro, então um jovem director da revista coimbrã, “Presença”
.

O texto desta carta foi sendo considerado, ao longo dos tempos, como sagrado e inquestionável. Nele, e como resposta a um pedido feito pelo Casais Monteiro, por sua carta de 10 desse mesmo mês, o Fernando Pessoa, em oito longas páginas dactilografadas, usa metade desse texto para dar uma explicação para a sua heteronomia e para caracterizar, poeticamente, psicologicamente e até (?) fisicamente, os seus três mais conhecidos heterónimos.

A leitura completa dessa carta é muito importante para quem pretenda compreender completamente, tudo o que irá ser escrito de seguida. E essa leitura pode ser feita no livro de Adolfo Casais Monteiro, “Páginas de doutrina estética”, 1946, no livro de João Gaspar Simões, “Vida e Obra de Fernando Pessoa. História de uma geração”, 1950 (vol. II) , no volume da Edição Crítica do Fernando Pessoa, da Imprensa Nacional de 1988, “Cartas entre Fernando Pessoa e os directores da Presença”, edição e estudo de Enrico Martines . e, ainda, no nº 49 (Junho de 1937) da revista “Presença”.

Começo por cometer o “sacrilégio” de pôr completamente em causa o sentido literal de tudo quanto o Poeta diz sobre a génese dos seus principais heterónimos.

Explicando-me: o Fernando Pessoa era um correspondente muito relapso e disso se estava sempre a desculpar a todos para quantos escrevia. Demorava sempre, ou quase sempre, semanas, quando não eram mesmo, meses, a responder, sob as mais diversas alegações: problemas familiares, doenças, falta de sentido de concentração, amargura e solidão… E era, realmente assim que corria a vida real do Fernando Pessoa. Amarguras e depressões que ele procurava esconder dos seus companheiros dos cafés que frequentava e que percorria, como se tal fosse um rito que o ajudasse a viver.

Ora a célebre carta, que a Edição Crítica analisa nas suas duas versões, agora existentes no espólio, na Biblioteca Nacional, – o original, recebido pelo Casais Monteiro e a cópia, a papel químico, que o Fernando Pessoa tirou, como tirava sempre das cartas que considerava como mais importantes –, tem a data de 13 de Janeiro e responde à carta do Casais Monteiro de, 10 do mesmo mês. Portanto, mesmo “na volta do correio”! O que é um espanto, quer pelos seus hábitos epistolares, quer pela extensão do texto, e quer ainda pela precisão dos detalhes já referidos. Daí que seja perfeitamente razoável retirar uma primeira ideia: o tema estava perfeitamente estudado e preparado, aguardando a melhor e a mais “rentável oportunidade”,( do ponto de vista do autor), para ver a luz do dia. E ela surgiu com o pedido do jovem ensaísta, seu grande admirador, que pretendia escrever um livro sobre o Poeta Fernando Pessoa. Só mesmo assim podemos ultrapassar os incríveis três dias de diferença entre o pedido e a sua satisfação, sobretudo, sabendo que esse período se reduz a um dia, perante a normal demora do correio.

É difícil admitir que o jovem admirador do Poeta, tenha acreditado ,e atrás dele, muitos outros, menos jovens e mais sabedores, que tenha realmente existido “
O dia glorioso de 8 de Março de 1914," em que, depois de ter escrito, numa folha em branco, como título, “O Guardador de Rebanhos”, escreveu, de seguida e de um só fôlego, “trinta e tantos poemas” que constituem a maior parte da obra, "O Guardador de Rebanhos" do Alberto Caeiro, que assim, acabara de nascer. Parece que nem ele, nem os que se lhe seguiram, leram, um pouco antes, na mesma carta, esta frase, que até parece um aviso aos incautos:

Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica para a despersonalização e para a simulação.”

Por outro lado, à medida que mais estudiosos foram tendo acesso ao espólio pessoano, mais pontas soltas foram sendo encontradas. Só dois exemplos. Há um texto isolado, que podia ser destinado ao prefácio da Obra do Caeiro, em que Pessoa declara que no dia
13 de Março de 1914 escreveu “de um só hausto do espírito…grande número dos primeiros poemas do Guardador de Rebanhos”, embora na carta dos heterónimos tenha fixado, para esse efeito, o dia 8 do mesmo mês… Por outro lado, há, no espólio, poemas do Guardador de Rebanhos com datas de 4, 7, 8 e 11 de Março de 1914, os quais, somados aos poemas não datados também lá existentes, eleva para 24 o número de poemas escritos antes ou depois do “dia triunfal”…

Não me empenhei em arrasar um mito; apenas pretendi colocar uma certa ordem na questão da génese dos heterónimos. Se houve dia triunfal ou não, se foi no dia 8 ou no dia 13, tudo isso será importante para os filólogos e os exegetas encarregados de fazer a Edição Crítica da Obra de Fernando Pessoa; de posse dos textos originais, analisando a tinta e as características do bico do aparo ou aparos com que foram escritos, avaliando o tipo de papel utilizado como suporte para essa escrita, eles estão a pôr em prática as técnicas da ciência que estudaram. Nós, maravilhados leitores da Obra do Fernando Pessoa, precisamos de saber muito pouco desse tipo de coisas para “sentirmos” a sua poesia.

O ordenar a questão desta maneira mais clara, permite-nos avançar mais livremente na busca de uma explicação para a heteronomia do Fernando Pessoa.

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