ODE MORTAL
Tu, Caeiro, meu mestre, qualquer que
seja o corpo
Com que vestes agora, distante ou
perto, a essência
Da tua alma universal localizada,
Do teu corpo divino intelectual...
Viste com a tua cegueira perfeita,
sabes o não ver...
Porque o que viste com os teus dedos
materiais e admiráveis
Foi a face sensível, e não a face
fisiognómica das coisas
Foi a realidade, e não o real.
Porque a verdade que é tudo é só a
verdade que há em tudo
E a verdade que há em tudo é a
verdade que o excede!
É à luz que ela é visível,
E ela só é visível porque há luz.
Ah, sem receio!
Ah, sem angústia!
Ah, sem cansaço antecipado da marcha
Nem cadáver velado pelo próprio
cadáver na ideia
Nas noites em que o vento assobia no
mundo deserto
E a casa onde durmo é o túmulo de
tudo,
Nem o sentir-se morto
impossivelmente sentindo-se cadáver,
Nem a consciência de não ter
consciência dentro de tábuas e chumbo,
Nem nada...
Olho o céu de dia e olho o céu de
noite
E este universo 'sférico e côncavo
Vejo-a como uma esfera dentro da
qual vivemos,
Limitada porque é a parte de dentro
Mas com estrelas e o sol rasgando o
visível
Por fora, para o convexo que é
infinito...
Gritai de alegria, gritai comigo,
gritai,
Coisas cheias, sobre-cheias,
Que sois minha vida turbilhonante...
Eu vou sair da esfera oca
Não por uma estrela, mas pela luz de
uma estrela -
Vou para o espaço real...
Que espaço cá dentro é espaço de
estar fechado
E só parece infinito por estar
fechado muito longe...
Muito longe em pensá-lo.
A minha mão está já no puxador-luz.
Vou abrir com um gesto largo,
Com um gesto autêntico e mágico,
A Porta para o Convexo,
A Janela para o Informe,
A Razão para o maravilhoso
definitivo.
Vou poder circum-navegar por fora
este dentro
Que tem as estrelas no fim, vou ter
o céu
Por baixo do sobrado curvo -
Tecto da cave das coisas reais,
Da abóbada nocturna da morte e da
vida...
Vou partir para FORA,
Para o Arredor Infinito,
Para a circunferência exterior,
metafísica,
Para a luz por fora da noite,
Para a Vida-morte por fora da
morte-Vida.
E aí, no Verdadeiro,
Tirarei os astros e a vida da
algibeira como um presente ao Certo,
Lerei a Vida de novo, como uma carta
guardada
E então, com luz melhor, verei bem a
letra e saberei.
O cais está cheio de gente a ver-me
partir.
Mas o cais é à minha volta e eu
encho o navio -
E o navio é cama, caixão, sepultura
-
E eu não sei o que sou pois já não
estou ali...
E eu, que cantei
A civilização moderna, aliás igual à
antiga,
As coisas do meu tempo só porque
esse tempo foi meu,
As máquinas, os motores,
Vou em diagonal a tudo para cima.
Passo pelos interstício de tudo,
E como um pó sem ser rompo o
envólucro
E partirei, globo-trotter do Divino,
Quantas vezes, quem sabe?,
regressando ao mesmo ponto
(Quem anda de noite que sabe do
andar de noite?)
Levarei na sacola o conjunto do
visto -
O céu e de estrelas , e o sol em
todos os modos,
E todas as estações e as suas
maneiras de cores,
E os campos, e as serras, e as
terras que cessam em praias
E o mar para além, e para além do
mar que há além.
E de repente se abrirá a Última
Porta das coisas,
E Deus, como um Homem, me aparecerá
por fim.
E será o Inesperado que eu esperava
-
O Desconhecido que eu conheci sempre
-
O único que eu sempre conheci.
ÁLVARO DE CAMPOS, 12 DE JANEIRO DE
1927
Sem comentários:
Enviar um comentário