AURÉOLA
Em torno à minha fronte que descora
Que Deus beijou
Num Nunca deste mundo, num outrora
De um outro Tempo, que Deus não
criou,
Brilha, vaga aos olhares dos carnais
E dispersa no dia
Uma Auréola de ânsias imortais
Que é a minha Alma divina de agonia.
E eu tão Deus, tão Deus me sinto,
tanto,
Que rezo a mim, meus Deus,
E que recebo as gotas do meu pranto
Como incenso elevado a mim, meus
céus;
Porque eu sou mais do que conheço e
sinto
Contenho um eu-além,
Tenho em mim todo o mundo, e em mim
pressinto
Mais cousas e outras do que o mundo
tem.
Nos meus olhos cegando para a vida
Passam quasis de ver
Uma outra realidade entretecida
Daquilo a que chamamos o não-ser.
Por isso, meu Altar e meu Calvário
E minha Cruz
Eu santifico-me ante mim, lendário
De já ter visto Deus, numa outra
Luz,
E assim tão alto sobe no Ideal
A minha inspiração
Que fulge em torno à minha fronte,
real,
Uma auréola de amor e redenção.
Redimido da sombra e do Imperfeito
Conquisto o Santo-Graal,
Porque contenho dentro do meu peito
Um Eu que absolve em Bem meu próprio
Mal.
Sombra, atravesso a vida. alheio a
ela,
Brilho, estrela, de Além,
Sou Tudo e Deus; minha alma é mais
que bela
Pois da minha alma é que a Beleza
vem.
Transbordo-me de humano, e (...), e
sóbrio
Para o eu que Deus é.
Sou Deus tendo consciência de
si-próprio
Sou um Cristo de uma outra,a minha,
fé.
Deus é tudo; eu sou Deus portanto e
ó calma
Deus, absoluto e Deus
Cujo amor desceu a ser minha alma
P'ra que minha alma pudesse subir
até Deus
O meu orgulho humilíssimo, esplendor
De pequenez, fulgindo
Em Auréola desce de Outro Amor
Em torno à minha fronte, luz
sorrindo..
A embriaguez de (...) e do Mistério
E da Revelação...
Sinto.-me imponderável, áureo e
aéreo
E outra-coisa que a minha
imperfeição,
Sinto-me já por dentro de ares,
mares
Alma da Natureza
Que belo sou quando de sóis e
luares!
Quando floresço (...)
O universo é meu corpo de delírio,
E o que há mais que universo,
A alegria de o ter é o meu martírio,
Por ele fujo, consciente e disperso.
Até que a mim regresso quando
embrumo
Meu ser de mim,
Sou outra vez esse ser que é sombra
e fumo
Falsa ascensão com falso
não-ter-fim...
Eu sou fogo... Isso sei, ainda que o
esqueça
Meu quotidiano ser...
A auréola que tenho é a alma acesa
Que é tanta que a não posso a mim
'sconder.
Ascensão! Ascensão! Luz do cimo da
alma!
Santificado!
FERNANDO PESSOA, 13 DE ABRIL DE 1913
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