sexta-feira, 13 de abril de 2018

FAZ HOJE 105 ANOS





AURÉOLA

Em torno à minha fronte que descora
Que Deus beijou
Num Nunca deste mundo, num outrora
De um outro Tempo, que Deus não criou,

Brilha, vaga aos olhares dos carnais
E dispersa no dia
Uma Auréola de ânsias imortais
Que é a minha Alma divina de agonia.

E eu tão Deus, tão Deus me sinto, tanto,
Que rezo a mim, meus Deus,
E que recebo as gotas do meu pranto
Como incenso elevado a mim, meus céus;

Porque eu sou mais do que conheço e sinto
Contenho um eu-além,
Tenho em mim todo o mundo, e em mim pressinto
Mais cousas e outras do que o mundo tem.

Nos meus olhos cegando para a vida
Passam quasis de ver
Uma outra realidade entretecida
Daquilo a que chamamos o não-ser.

Por isso, meu Altar e meu Calvário
E minha Cruz
Eu santifico-me ante mim, lendário
De já ter visto Deus, numa outra Luz,

E assim tão alto sobe no Ideal
A minha inspiração
Que fulge em torno à minha fronte, real,
Uma auréola de amor e redenção.

Redimido da sombra e do Imperfeito
Conquisto o Santo-Graal,
Porque contenho dentro do meu peito
Um Eu que absolve em Bem meu próprio Mal.

Sombra, atravesso a vida. alheio a ela,
Brilho, estrela, de Além,
Sou Tudo e Deus; minha alma é mais que bela
Pois da minha alma é que a Beleza vem.

Transbordo-me de humano, e (...), e sóbrio
Para o eu que Deus é.
Sou Deus tendo consciência de si-próprio
Sou um Cristo de uma outra,a minha, fé.

Deus é tudo; eu sou Deus portanto e ó calma
Deus, absoluto e Deus
Cujo amor desceu a ser minha alma
P'ra que minha alma pudesse subir até Deus

O meu orgulho humilíssimo, esplendor
De pequenez, fulgindo
Em Auréola desce de Outro Amor
Em torno à minha fronte, luz sorrindo..

A embriaguez de (...) e do Mistério
E da Revelação...
Sinto.-me imponderável, áureo e aéreo
E outra-coisa que a minha imperfeição,

Sinto-me já por dentro de ares, mares
Alma da Natureza
Que belo sou quando de sóis e luares!
Quando floresço (...)

O universo é meu corpo de delírio,
E o que há mais que universo,
A alegria de o ter é o meu martírio,
Por ele fujo, consciente e disperso.

Até que a mim regresso quando embrumo
Meu ser de mim,
Sou outra vez esse ser que é sombra e fumo
Falsa ascensão com falso não-ter-fim...

Eu sou fogo... Isso sei, ainda que o esqueça
Meu quotidiano ser...
A auréola que tenho é a alma acesa
Que é tanta que a não posso a mim 'sconder.

Ascensão! Ascensão! Luz do cimo da alma!
Santificado!

FERNANDO PESSOA, 13 DE ABRIL DE 1913


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