domingo, 17 de setembro de 2017

FAZ HOJE 82 ANOS




UN SOIR À LIMA

Vem a voz da radiofonia e dá
A notícia num arrastamento vão:
"A seguir
Un Soir à Lima...

Cesso de sorrir...
Para-me o coração...

E, de repente,
Essa querida e maldita melodia
Rompe do aparelho inconsciente...
Numa memória súbita e presente
Minha alma se extravia...

O grande luar da África fazia
A enconsta arborizada alvinitente.

A sala em nossa casa era ampla, e estava
Posta onde, até ao mar, tudo se dava
À clara escuridão do luar ingente...
Mas só eu, à janela.
Minha mãe estava ao piano
E tocava...
Exactamente
Un Soir à Lima.

Meu Deus que longe, que perdido isso está!
Que é do seu alto porte?
Da sua voz continuamente acolhedora?
Do seu sorriso carinhoso e forte?
O que hoje há
Que mo recorda é isso que ouço agora:
Un Soir à Lima.
Prossegue na telefonia
A mesma, a mesma melodia
O mesmo Un Soir à Lima.

Seu cabelo grisalho era tão lindo
Sob a luz
E eu que nunca julguei que ela morresse
E me deixasse entregue a quem eu sou!
Morreu, mas eu sou sempre o seu menino.
Ninguém é homem para a sua mãe.

E inda através das lágrimas não falha
À memória que tenho
O recorte perfeito de medalha
Daquele perfeitíssimo perfil.
Chora, ao lembrar-te, mãe, romana e já grisalha,
Meu coração sempre infantil.
Vejo teus dedos no teclado e há
Luar lá fora eternamente em mim.
Tocas em meu coração, sem fim,
Un Soir à Lima.

"Os pequenos dormiram logo?"
"Ora, dormiram logo."
"Esta está quase a dormir"
E tu, sorrindo ao responder, continuavas
O que tocavas -
Atentamente tocavas -
Un Soir à Lima.

Tudo que fui quando não era nada,
Tudo o que amei e sei só em verdade
Que o amei por não ter hoje estrada
Que tenha qualquer realidade,
Por não ter dele mais que a saudade -
Tudo isso vive em mim
Por luzes, música e a visão
Que não tem fim
Dessa hora eterna no meu coração,
Em que voltavas
A folha irreal da música a tocar
E eu te ouvia e via
Continuar
A eterna melodia
Que está
No fundo eterno desta nostalgia
De quando, mãe, tocavas
Un Soir à Lima.

E o aparelho indiferente
Traz da emissora inconsciente
Un Soir à Lima.

Eu não sabia então que era feliz.
Hoje, que o já não sou, sei bem que o era.

"Esta também está a dormir..."
"Não está."
Ficámos todos a sorrir
E eu distraidamente vou
Continuando a ouvir,
Longe do luar que há
E que lá fora existe duro e só,
O que me faz sonhar sem o sentir,
O que hoje faz com que tenha de mim dó
Esse canto sem voz, teclado e brando
Que minha mãe estava tocando -
Um Soir à Lima.

Não ter aqui numa gaveta,
Não ter aqui numa algibeira,
Fechada, havida, completa,
Essa cena inteira!
Não poder arrancar
Do espaço, do tempo, da vida
E isolar
Num lugar
Da alma onde ficasse possuída
Eternamente
Viva, quente,
Essa sala, essa hora,
Toda a família e a paz e a música que há
Mas real como ali está,
Ainda, agora,
Quando, mãe, mãe, tocavas
Un Soir à Lima.

Mãe. mãe, fui teu menino
Tão bem dobrado
Na sua educação
E hoje sou o trapo que o Destino
Fez enrolado e atirado
Para um canto do chão.

Jazo, mesquinho,
Mas ao meu coração
Sobe, em torvelinho
A memória de quanto ouvi do que há
No que há de carícia, de lar, de ninho,
Ao relembrar o ouvi, hoje, meu Deus, sozinho
Un Soir à Lima.

Onde é que a hora, e o lar e o amor está
Quando, mãe, mãe, tocavas
Un Soir à Lima?

E num recanto de cadeira grande
Minha irmã,
Pequena e encolhida
Não sabe se dorme se não.

Eu tenho sido tanta coisa vil!
Tenho traído tanto do que sou!
Meu espírito sedento
De raciocinador subtil
Quantas vezes prolixamente errou!
Quantas vezes até o pensamento
Inanimadamente me enganou!

Já que não tenho lar,
Deixa-me estar
Nesta visão
Do lar de então
Deixa-me ouvir, ouvir, ouvir -
Eu à janela
Do nunca mais deixar de sentir,
Nessa sala, a nossa sala, quente
Da África ampla onde o luar está
Lá fora vasto e indiferente
Nem mal nem bem
E onde, no meu coração
Mãe. mãe
Tocas visivelmente
Tocas eternamente
Un Soir à Lima.

Meu padrasto
(Que homem, que alma, que coração!)
Reclinava o seu corpo basto
De atleta sossegado e são
Na poltrona maior
E ouvia, fumando e cismando,
E o seu olhar azul não tinha cor.
E minha irmã, criança,
No recanto da sua poltrona
Enrolada, ouvia a dormir
E a sorrir
Que estava alguém tocando
Se calhar uma dança...
E eu de pé, ante a janela
Via todo o luar de toda a África inundar
A paisagem e o meu sonhar.

Onde tudo isso está?
Un Soir à Lima,
Quebra-te, coração!

Mas entorpeço.
Não sei se vejo se adormeço,
Se sou quem fui,
Não sei se lembro, nem se esqueço.
Há qualquer coisa que indistinta flui
Entre o que eu sou e o que eu era
E é como um rio, ou uma brisa, ou um sonhar,
Qualquer coisa que não se espera,
Que se suspende de repente
E, do fundo aonde ia acabar,
Surge cada vez mais distintamente,
Num halo de suavidade
E nostalgia,
Onde o meu coração ainda está,
Um piano, uma presença, uma saudade...
Durmo encostado a essa melodia -
E oiço que minha mão toca,
Oiço, já com o sal das lágrimas na boca,
Un Soir à Lima.

O véu das lágrimas não cega.
Vejo, a chorar,
O que essa musica me entrega -
A mãe que eu tinha, o antigo lar,
A criança que fui,
O horror do tempo porque flui,
O horror da vida, porque é só matar.
Vejo, e adormeço,
E no torpor em que me esqueço
Estou vendo minha mãe tocar.
E essas mão brancas e pequenas,
Cuja carícia nunca mais me afagará,
Tocam ao piano, cuidadosas e serenas,
Un Soir à Lima.

Ah, vejo tudo claro!
Estou outra vez ali.
Afasto do luar externo e raro
Os olhos com que o vi.

Mas, quê? Divago, e a música acabou...
Divago como sempre divaguei
Sem ter na alma certeza de quem sou,
Nem verdadeira fé ou firme lei.

Divago, crio eternidades minhas
Num ópio de memória e de abandono
Entronizo fantásticas rainhas
Sem para elas ter um trono.

Sonho porque me banho
No rio ideal da música evocada.
Minha alma é uma criança esfarrapada
Que dorme num recanto obscuro.
De meu só tenho,
Na realidade certa e acordada,
Os trapos da minha alma abandonada
E a cabeça que sonha contra o muro.

Mas. mãe, não haverá
Um Deus que me não torne tudo vão,
Um outro mundo em que isso agora está?
Divago anda: tudo é ilusão.
Um Soir à Lima...

Quebra-te coração...

FERNANDO PESSOA, 17 DE SETEMBRO DE 1935


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