quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

FAZ HOJE 105 ANOS





ISOLA D'ORO

Muito longe, muito longe...
Nem tu sabes, filha
Como era longe, tão longe
Aquela (...) ilha

Onde eu vivi, tão sonhando
Uma vida que não tive
E onde Essa cujo olhar brando
Foi sonho meu, inda vive...

Nem tu sabes como é longe
Num Oriente de outra terra
Essa ilha onde eu fui monge!
Ao longe havia uma serra

Aquém erra o olhar sombrio
De arvoredos de outro ser
Corria por ele um rio
Com outro modo de correr

Foi aí que eu aprendi,
Foi aí que eu fui buscar
O sonho que busco em ti
E que em ti não posso achar...

É por ter ali vivido
Que não posso ter amor
A quanto há entre o ruído
Deste mundo em meu redor.

Por isso quando te olho
Não penso em ti, mas evoco
Outro amor que em mim desfolho...
Por isso nunca te toco,

Por isso vivo sozinho
Alheadamente tristonho...
Não sei construir um ninho
Senão com penas de sonho

Das que há naquela ilha
Que amei antes de viver...
Não me olhes... Eu sonho, filha...

II

Mas tu tens às vezes gestos
Modos rápidos de olhar,
Leves (...) lestos
Que não tens consciência

Que lembram gestos de Aquela
Que viveu comigo além
Naquela ilha que é bela
Pelo Mundo que não tem

E eu pergunto de repente
Se tu serás ela, e como
Eu próprio sejas doente
De universo... E um vago assomo

De querer-te no ignorar-te
De te amar até esquecer-te
Torna-se toda a minha arte...
Ah, o tédio que este céu verte!

FERNANDO PESSOA, 25 DE JANEIRO DE 1912


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