quinta-feira, 9 de junho de 2016

FAZ HOJE 81 ANOS


REMINISCÊNCIA



(O CAPITÃO, O CONTRAMESTRE, O MAR)

Azul ou verde ou roxo, quando o sol
O doura falsamente de vermelho,
O mar é áspero, casual ou mole,
É uma vez abismo e outra espelho.
Evoco porque sinto velho
O que em mim quereria mais que o mar
Já que nada ali há por desvendar.

Os grandes capitães e os marinheiros
Com que fizeram a navegação,
Jazem longínquos, lúgubres parceiros,
Do nosso esquecimento e ingratidão.
Só o mar, às vezes, quando são
Grandes as ondas e deveras mar
Parece incertamente recordar

Mas sonho... O mar é água, é água nua,
Serva do obscuro ímpeto distante
Que, como a poesia, vem da lua
E uma vez o abata e outra o levante.
Mas por mais que descante
Sobre a ignorância natural do mar,
Pressinto-o vagamente a memorar.

Quem sabe o que é a alma? Quem conhece
Que alma há nas coisas que parecem mortas,
Quanto em terra ou nos mares nunca esquece.
Quem sabe se no espaço vácuo há portas?
Ó sonho que me exortas
A meditar assim a voz do mar,
Ensina-me a saber meditar.

Capitães, contramestres - todos nautas
Da descoberta infiel de cada dia -
Acaso vos chamou de ignotas flautas
A vaga e impossível melodia?
Acaso vosso ouvido ouvia
Qualquer coisa do mar sem ser o mar -
Sereias só de ouvir, e não de achar?

Quem, através de intérminos oceanos,
Vos chamou à distância, como quem
Soubesse que há nos corações humanos
Não só uma ânsia natural do bem,
Mas, mais vaga, mais subtil também,
Uma coisa que quer o som do mar
E o estar longe de tudo e não parar.

Se assim é, e se vós e o mar imenso
São qualquer coisa, vós por o sentir
E o mar por o ser, disto que penso;
Se no fundo ignorado de existir
Há mais alma que a que pode vir
À tona vã de nós, como à do mar,
Fazei-me livre, enfim de o ignorar.

Dai-me uma alma transposta de argonauta,
Fazei que eu tenha, como o capitão
Ou o contramestre, ouvidos para flauta
Que chama ao largo o nosso coração,
Fazei-me ouvir, como a um perdão,
Numa reminiscência de ensinar,
O antigo português da voz do mar!

FERNANDO PESSOA, 9 DE JUNHO DE 1935


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