segunda-feira, 18 de novembro de 2019

FAZ HOJE 90 ANOS




O PASTOR AMOROSO

VII

Talvez quem vê bem não sirva para sentir
E não agrade por estar muito antes das maneiras.
É preciso ter modos para todas a cousas,
E cada cousa tem o seu modo, e o amor também.
Quem tem o modo de ver os campos pelas ervas
Não deve ter a cegueira que faz fazer sentir.
Amei e não fui amado, o que só vi no fim,
Porque não se é amado como se nasce mas como acontece.
Ela continua tão bonita de cabelo e boca como dantes,
E eu continuo como era dantes, sozinho no campo.
Como se estivesse estado de cabeça baixa,
Penso isto e fico de cabeça alta
E o dourado sol seca a vontade de lágrimas que não posso deixar de ter.
Como o campo é grande e o amor é pequeno!
Olho, e esqueço, a forma como a gente enterra e as árvores se desfolham.

Eu não sei falar porque estou a sentir.
Estou a escutar a minha voz como se fosse de outra pessoa,
E a minha voz fala dela como se ela é que falasse.
Tem o cabelo de um louro amarelo de trigo
ao sol claro,
E a boca quando fala diz cousas que não há nas palavras.
Sorri, e os dentes são limpos como as pedras do rio.

ALBERTO CAEIRO, 18 DE NOVEMBRO DE 1929


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