SANTO ANTÓNIO
Nasci exactamente no teu dia -
Treze de Junho, quente de alegria,
Citadino, bucólico e humano
Onde até esses cravos de papel
Que têm uma bandeira em pé quebrado
Sabem rir...
Santo dia profano
Cuja luz sabe a mel
Sobre o chão de bom vinho derramado!
Santo António, és portanto
O meu santo,
Se bem que nunca me pegasses
Teu franciscano sentir,
Católico, apostólico e romano.
(Reflecti.
Os cravos de papel creio que são
Mais propriamente, aqui,
Do dia de S. João...
Mas não vou escangalhar o que
escrevi.
Que tem um poeta com a precisão?)
Adiante. . . Ia eu dizendo, Santo
António,
Que tu és o meu santo sem o ser.
Por isso o és a valer,
Que é essa a santidade boa,
A que fugiu deveras ao demónio.
És o santo das raparigas,
És o santo de Lisboa,
És o santo do povo.
Tens uma auréola de cantigas,
E então
Quanto ao teu coração -
Está sempre aberto lá o vinho novo.
Dizem que foste um pregador insigne,
Um austero, mas de alma ardente e
ansiosa,
Etcetera...
Mas qual de nós vai tomar isso à
letra?
Que de hoje em diante quem o diz se
digne
Deixar de dizer isso ou qualquer
outra cousa.
Qual santo! Olham a árvore a olho nu
E não a vêem, de olhar só os ramos.
Chama-se a isto ser doutor
Ou investigador.
Qual Santo António! Tu és tu.
Tu és tu como nós te figuramos.
Valem mais que os sermões que
deveras pregaste
As bilhas que talvez não
consertaste.
Mais que a tua longínqua santidade
Que até já o Diabo perdoou,
Mais que o que houvesse, se houve,
de verdade
No que - aos peixes ou não - a tua
voz pregou,
Vale este sol das gerações antigas
Que acorda em nós ainda as
semelhanças
Com quando a vida era só vida e
instinto,
As cantigas,
Os rapazes e as raparigas,
As danças
E o vinho tinto.
Nós somos todos quem nos faz a
história.
Nós somos todos quem nos quer o
povo.
O verdadeiro título de glória,
Que nada em nossa vida dá ou traz,
É haver sido tais quando aqui
andámos,
Bons, justos, naturais em singeleza,
Que os descendentes dos que nós
amámos
Nos promovem a outros, como faz
Com a imaginação que há na certeza,
O amante a quem ama,
E o faz um velho amante sempre novo.
Assim o povo fez contigo
Nunca foi teu devoto; é teu amigo,
Ó eterno rapaz.
(Qual santo nem santeza!
Deita-te noutra cama!)
Santos, bem santos, nunca têm
beleza.
Deus fez de ti um santo ou foi o
Papa?...
Tira lá essa capa!
Deus fez-te santo? O Diabo, que é
mais rico
Em fantasia, promoveu-te a
manjerico.
És o que és para nós. O que tu foste
Em tua vida real, por mal ou bem,
Que coisas ou não-coisas se te devem
Com isso a estéril multidão arroste
Na nora de erros duns burros que
puxam, quando escrevem,
Essa prolixa nulidade, a que se
chama história.
Quem foste tu ou foi alguém,
Só Deus o sabe, e mais ninguém.
És pois quem nós queremos, és tal
qual
O teu retrato, como está aqui,
Neste bilhete postal.
E parece-me até que já te vi.
És este, e este és tu, e o povo é
teu -
O povo que não sabe onde é o céu,
E nesta hora em que vai alta a lua
Num plácido e legítimo recorte,
Atira risos naturais à morte,
E, cheio de um prazer que mal é seu,
Em canteiros que andam enche a rua.
Sê sempre assim, nosso pagão
encanto,
Sê sempre assim!
Deixa lá Roma entregue à intriga e
ao latim,
Esquece a doutrina e os sermões.
De mal, nem tu nem nós merecíamos
tanto.
Foste Fernando de Bulhões,
Foste Frei António
Isso sim.
Por que demónio
É que foram pregar contigo em santo
FERNANDO PESSOA, 9 DE JUNHO DE 1935
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