EPISÓDIOS
...O tédio dos radidiotas e dos
areochatos,
De todo o conseguimento quantitativo
desta vida sem qualidade,
A náusea de ser contemporâneo de mim
mesmo -
A ânsia de novo novo, de certo
verdadeiro,
Da fonte, do começo, da origem.
A pedra no anel errado no teu dedo
Como fulgura na minha memória,
Ó pobre esfinge da aristocracia
burguesa conversada em viagem!
Que vagos amores escondias na tua
elegância verdadeira
Tão falsos, pobre iludida lúcida,
Encontrada a bordo deste navio, como
de todos os navios!
Tomavas cocaína por superioridade
ensinada,
Rias dos velhos maçadores menos
maçadores que tu,
Pobre criança órfã de mais que pai e
mãe.
Pobre-diabo meio flapper,
transtransviada!
E eu, o moderno que o não sou, eu
que consinto
Nos arredores da minha sensibilidade
as tendas dos ciganos,
De toda a modernidade papel-moeda;
Eu, incongruente e sem esperanças,
Passageiro como tu no navio, mas
mais passageiro que tu,
Porque onde tu és certa eu sou
incerto,
Onde tu sabes o que és eu não sei o que
sou e sei que não sabes o que és,
E entre as dança tocadas ad nauseam
pela banda de bordo
Debruço-me sobre o mar nocturno e
tenho saudades de mim.
Que fiz eu da vida?
Que fiz eu do que queria fazer da
vida?
Que fiz eu do que podia ter feito da
vida?
Serei eu como tu, ó viajante do Anel
Anafrodisíaco?
Olho-te sem te distinguir da matéria
amorfa das coisas
E rio no fundo da meu pensamento
oceânico e vazio.
No quintal da minha casa provinciana
e pequena -
Casa como a que têm milhões não com
eu no mundo -
Deve haver paz a esta hora, sem mim.
Mas em mim é que nunca haverá paz...
Porque então sorrio eu de ti,
viajante superfina?
Ó pobre água-de-colónia da melhor
qualidade,
Ó perfume moderno do melhor gosto,
em frasco de feitio,
Meu pobre amor que não amo caricatural
e bonita!
Que texto para um sermão o que não
és!
Que poemas faria um poeta verdadeiro
sem pensar em ti!
Mas a banda de bordo estruge e
acaba...
E o ritmo do mar homérico trepa por
cima do meu cérebro -
Do velho mar homérico, ó selvagem
deste cérebro grego,
Com penas na cabeça da alma,
Com argolas no nariz da
sensualidade,
E com consciência de meio-manequim
de ter aspecto no mundo.
Mas o facto é que a banda de bordo
cessa,
E eu verifico
Que pensei em ti enquanto durou a
banda de bordo.
No fundo somos todos
Românticos,
Vergonhosamente românticos
E o mar continua agitado e calmo,
Servo sempre da atenção severa da
lua,
Como, aliás, o sorriso com que me
interrogo
E olho para o céu sem metafísica e
sem ti... Dor de corno...
ÁLVARO DE CAMPOS, POEMA SEM DATA
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