A miséria da minha condição não é estorvada por estas
palavras conjugadas, com que formo, pouco a pouco, o meu livro casual e
meditado. Subsisto nulo no fundo de toda a expressão, como um pó indissolúvel
no fundo do copo de onde se bebeu só água. Escrevo a minha literatura como
escrevo os meus lançamentos - com cuidado e indiferença. Ante o vasto céu
estrelado e o enigma de muitas almas,
a noite do abismo incógnito e o choro de nada se
compreender - ante tudo isto o que escrevo no caixa auxiliar e o que escrevo
neste papel da alma são coisas igualmente restritas à Rua dos Douradores, muito
pouco aos grandes espaços milionários do universo.
Tudo isto é sonho e fantasmagoria, e pouco vale que o
sonho seja lançamentos como prosa de bom porte. Que serve sonhar com princesas,
mais que sonhar com a porta da entrada do escritório? Tudo que sabemos é uma
impressão nossa, e tudo que somos é uma impressão alheia, melodrama de nós,
que, sentindo-nos, constituímos nossos próprios espectadores activos, nossos
deuses por licença da Câmara.
BERNARDO SOARES
(Do Livro do Desassossego)
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