segunda-feira, 28 de maio de 2012

LIVRO DO DESASSOSSEGO


     
  Reconheço, não sei se com tristeza, a secura humana do meu coração. Vale mais para mim um adjectivo que um pranto real da alma. O meu mestre Vieira (…)
        Mas às vezes sou diferente, e tenho lágrimas, lágrimas das quentes dos que não têm nem tiveram mãe; e os meus olhos que ardem dessas lágrimas mortas, ardem dentro do meu coração.

        Não me lembro da minha mãe. Ela morreu tinha eu um ano. Tudo o que há de disperso e duro na minha sensibilidade vem da ausência desse calor e da saudade inútil dos beijos de que me não lembro. Sou postiço. Acordei sempre contra seio s outros, acalentado por desvio.

        Ah, é a saudade do outro que eu poderia ter sido que me dispersa e me sobressalta! Quem outro seria eu se me tivessem dado carinho do que vem desde o ventre até aos beijos na cara pequena?

        Talvez que a saudade de não ser filho tenha grande parte na minha indiferença sentimental. Quem, em criança, me apertou contra a cara não me podia apertar contra o coração. Essa estava longe, num jazigo – essa que me pertenceria se o Destino houvesse querido que me pertencesse.

        Disseram-me, mais tarde, que minha mão era bonita, e dizem que, quando mo disseram, eu não disse nada. Era já apto de corpo e alma, desentendido de emoções, e o falarem  ainda não era uma notícia de outras páginas difíceis de imaginar.

        Meu pai, que vivia longe, matou-se quando eu tinha três anos e nunca o conheci. Não sei ainda por que é que vivia longe. Nunca me importei de o saber. Lembro-me da notícia da sua morte como de uma grande seriedade às primeiras refeições depois de se saber. Olhavam, lembro-me, de vez em quando para mim. E eu olhava de troco, entendendo estupidamente. Depois comia com mais regra, pois talvez, sem eu ver, continuassem a olhar-me

        Sou todas essas coisas, embora o não queira, no fundo confuso da minha sensibilidade fatal.

BERNARDO SOARES (sem data)
(Do Livro do Desassossego – texto 30)
        

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