TRAPO
O dia deu em chuvoso.
A manhã, contudo, esteve
bastante azul.
O dia deu em chuvoso.
Desde manhã eu estava um
pouco triste.
Antecipação? tristeza?
coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar
estava triste.
O dia deu em chuvoso.
Bem sei: a penumbra da
chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime,
por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser susceptível
às mudanças de luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou
aos outros que eu quero ser elegante?
Dêem-me o céu azul e o
sol visível.
Névoa, chuvas, escuros -
isso tenho eu em mim.
Hoje quero só sossego.
Até amaria o lar, desde
que o não tivesse.
Chego a ter sono de
vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efectivamente
sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.
Carinhos? afectos? São
memórias...
É preciso ser-se criança
para os ter...
Minha madrugada perdida,
meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.
Boca bonita da filha do
caseiro,
Polpa de fruta de um
coração por comer...
Quando foi isso? Não
sei...
No azul da manhã...
O dia deu em chuvoso.
ÁLVARO DE CAMPOS, 10 DE
SETEMBRO DE 1930
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