domingo, 31 de maio de 2020

FAZ HOJE 93 ANOS



Solene passa sobre a fértil terra
A branca, inútil nuvem fugidia,
Que um negro instante de entre os campos ergue
Um sopro arrefecido.

Tal me alta na alma a lenta ideia voa
E me enegrece a mente, mas já torno,
Como a si mesmo o mesmo campo, ao dia
Superfície da vida.


RICARDO REIS, 31 DE MAIO DE 1927

sábado, 30 de maio de 2020

FAZ HOJE 89 ANOS



Não digas que, sepulto, já não sente
O corpo, ou que a alma vive eternamente.
Que sabes tu do que não sabes? Bebe!
Só tens de certo o nada do presente.

Depois da noite, ergue-se do remoto
Oriente, com um ar de ser ignoto,
Frio, o crepúsculo da madrugada...
Do nada do meu sono ignaro broto.

Deixa aos que buscam o buscar, e a quem
Busca buscar julgar que busca bem.
Que temos nós com Deus e ele connosco?
Com qualquer coisa o que é que uma outra tem?

Sultão após sultão esta cidade
Passou, e hora após hora a vida, que há-de
Durar nela enquanto ela aqui durar,
Nem ao sultão ou a nós deu a verdade.

FERNANDO PESSOA, 30 DE MAIO DE 1931

sexta-feira, 29 de maio de 2020

FAZ HOJE 86 ANOS




O céu, azul de luz quieta...
As ondas brandas a quebrar
Na praia lúcida e completa -
Pontas de dedos a brincar...

No piano anónimo da praia
Tocam nenhuma melodia,
De cujo ritmo por fim raia
Todo o sentido deste dia.

Que bom se isto satisfizesse!
Que certo, se eu pudesse crer
Que esse mar e essas ondas e esse
Céu têm vida e têm ser.

FERNANDO PESSOA, 29 DE MAIO DE 1934

quinta-feira, 28 de maio de 2020

FAZ HOJE 90 ANOS




Tragam-me esquecimento em travessas!
Quero comer o abandono da vida!
Quero perder o hábito de gritar para dentro.
Arre, já basta! Não sei o quê, mas já basta...
Então viver amanhã, hein?... E o que se faz hoje?
Viver amanhã por ter adiado hoje?
Comprei por acaso um bilhete para esse espectáculo?
Que gargalhadas daria quem pudesse rir!
E agora aparece o eléctrico - o de que eu estou à espera -
Antes fosse outro... Ter de subir já!
Ninguém me obriga, mas deixá-lo passar, porquê?
Só deixando passar todos, e a mim mesmo, e à vida...
Que náusea no estômago real que é a alma consciente!
Que sono bom o ser outra pessoa qualquer...
Já compreendo por que é que as crianças querem ser guarda-freios...
Não, não compreendo nada...
Tarde de azul e ouro, alegria das gentes, olhos claros da vida...

ÁLVARO DE CAMPOS, 28 DE MAIO DE 1930

quarta-feira, 27 de maio de 2020

FAZ HOJE 111 ANOS




Poeira negra nevoando
A parda e indefinida estrada
És poeira, e mais nada.

Ténue poeira levantada
Da vida da estrada
Poeira pairando, revoando, nevoando
Sobre a branca, a monótona ou negra estrada
Poeira de sombras vivendo
Ai de nós - és poeira e mais nada.

Por mais longe que a poeira
Possa ir
Cai sempre.

A poeira é sempre da estrada.

FERNANDO PESSOA, 27 DE MAIO DE 1909

terça-feira, 26 de maio de 2020

FAZ HOJE 105 ANOS




Trouxeram-na morta,
Tirada da água...
Trouxeram-na morta...
Tocaram os sinos
Por toda la magoa
De anciões e meninos...

Trouxeram-na quatro
Seus olhos sem par
Não tinham fulgor
Trouxeram-na quatro.
Seu noivo, o alvar,
Seu irmão maior
E um que a viu achar.

No rio a encontraram,
No rio a entreviram...
No rio a encontraram
De brancuras corando...
Seu nome era brando...
Do rio a tiraram...

Sua boca era muda...
Algas seus cabelos
Sua boca era muda...
Seus olhos - só vê-los
Sonhava revê-los
Na antiga postura
Em que eram tão belos...
No rio a encontraram
À tarde, à aventura...

A quatro a trouxeram
P'ra casa dos pais...
A quatro a trouxeram
Chorando, chorando
P'ra casa dos pais...
Seu nome era brando
Como a dor sem ais...

Trouxeram-na morta...
Tão branca, sem par
Sua (...) absorta,
Só em se deixar
Ficar assim morta.
Que importa? Que importa?
Deus há-de explicar.


FERNANDO PESSOA, 26 DE MAIO DE 1915

segunda-feira, 25 de maio de 2020

FAZ HOJE 86 ANOS



O a quem tudo é negado
Tem o mundo por fado,
O a quem ninguém ama
Tem vida por chama
Esse a quem tudo falta,
Por baixo, a alma é alta.

São muitos os caminhos
E alheios os vizinhos!
São largas as estradas
E as distâncias erradas,
Mas sempre sobra à alma
A fé que a faça calma.

Assim, sem espada ou lança,
Vou, como uma criança!
Pela estrada cantando
Porque vou confiando.
Vou sem medo e sem frio
Não sei em que confio.

FERNANDO PESSOA, 25 DE MAIO DE 1934

domingo, 24 de maio de 2020

FAZ HOJE 105 ANOS




Ando com a minha alma ao colo,
Como se fosse uma criança,
Uma tristeza, um desconsolo,
Um amor ao que não se alcança...

Em que longínqua ilha deserta
Poderei ser o rei que fui?
Ao pé de que rio que flui
Ao pé duma janela aberta?

Essas horas ao pé da água
Seriam tão consoladoras
Das tristes, lentas, tardas horas
Que florescem na minha mágoa...

Vozes de crianças nos parques...
Arcos velozes nos jardins...
Não quero, ó alma, que tu arques
Com a dor nítida dos Fins...

Quero antes que, pendente duma
Janela ao pé do rio lento,
Deixes cair teu pensamento
No rio lento sem espuma...

E assim o percas, assim vá
Por esse rio, além da vista,
À deslizada e a alvar conquista
Das margens que aqui não há.

Teus brincos velhos, tua avó
Usava-os e era tão feliz...
Como o meu coração está só...
Não o acompanha o que tua voz diz.

Meus olhos vão na água vista
Sob essa janela sonhada...
Meus olhos, esse ver que dista
De mim como eu daquela estrada

Perdida que podia, ó alma,
Conduzir-me ao teu gesto lento,
E casar-me em teu pensamento
Com a longínqua e última calma.

Mares distantes, ilhas pondo
Flores e florestas no mar...
Ó grande solidão lunar
Entre as cousas que vou supondo!...

Maturadas as confidências
Que fiz um dia ao teu requinte,
Guardo minha alma por acinte
E a espada sangra entre as consciências...

FERNANDO PESSOA, 24 DE MAIO DE 1915

sábado, 23 de maio de 2020

FAZ HOJE 104 ANOS




Não sei, ama, onde era;
Nunca o saberei...
Sei que era primavera
E o jardim do rei...
(Filha, quem o soubera!...)

Que azul tão azul tinha
Ali o azul do céu!
Se eu não era a rainha,
Porque era todo meu?
(Filha, quem o adivinha?)

E o jardim tinha flores
De que não me sei lembrar...
Flores de tantas cores...
Penso e fico a chorar...
(Filha, os sonhos são dores...)

Qualquer dia viria
Qualquer cousa a fazer
De aquela alegria
Mais alegria nascer
(Filha, o resto é morrer...)

Conta-me contos, ama...
Todos os contos são
Esse dia, e jardim e a dama
Que eu fui nessa solidão...
(Filha, (...) )

FERNANDO PESSOA, 23 DE MAIO DE 1916

sexta-feira, 22 de maio de 2020

FAZ HOJE 104 ANOS



Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.

A entrada de Singapura, manhã subindo, cor verde,
O coral das Maldivas em passagem cálida,
Macau à uma hora da noite... Acordo de repente...
Yat-lô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô... Ghi - ...
E aquilo soa-me do fundo de uma outra realidade...
A estatura norte-africana quase de Zanzibar ao sol...
Dar-es-Salaam (a saída é difícil)...
Majunga, Nossi-Bé, verduras de Madagáscar...
Tempestades em torno ao Guardafui...
E o Cabo da Boa Esperança nítido ao sol da madrugada...
E a Cidade do Cabo com a Montanha da Mesa ao fundo...

Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei...
Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos...
Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,
Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir
E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.

A certos momentos do dia recordo tudo isto e apavoro-me,
Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge,
Desta estrada às curvas, deste automóvel à beira da estrada, deste aviso,
Desta turbulência tranquila de sensações desencontradas,
Desta transfusão, desta insubsistência, desta convergência iriada,
Deste desassossego no fundo de todos os cálices,
Desta angústia no fundo de todos os prazeres,
Desta saciedade antecipada na asa de todas as chávenas,
Deste jogo de cartas fastiento entre o Cabo da Boa Esperança e as Canárias.

Não sei se a vida é pouco ou de mais para mim.
Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei
Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência,
Consanguinidade com o mistério das coisas, choque
Aos contactos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,
Ou se há outra significação para isto mais cómoda e feliz.

Seja o que for, era melhor não ter nascido,
Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,
A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,
A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair
Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,
E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos
Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs,
E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso,
Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida.

Cruzo os braços sobre a mesa, ponho a cabeça sobre os braços,
E preciso querer chorar, mas não sei ir buscar as lágrimas...
Por mais que me esforce por ter uma grande pena de mim, não choro,
Tenho a alma rachada sob o indicador curvo que lhe toca...
Que há-de ser de mim? Que há-de ser de mim?
Correram o bobo a chicote do palácio, sem razão,
Fizeram o mendigo levantar-se do degrau onde caíra.
Bateram na criança abandonada e tiraram-lhe o pão das mãos.
Oh mágoa imensa do mundo, o que falta é agir...
Tão decadente, tão decadente, tão decadente...
Só estou bem quando ouço música, e nem então.
Jardins do século dezoito antes de 89,
Onde estais vós, que eu quero chorar de qualquer maneira?

Como um bálsamo que não consola senão pela ideia de que é um bálsamo,
A tarde de hoje e de todos os dias pouco a pouco, monótona, cai.

Acenderam as luzes, cai a noite, a vida substitui-se.
Seja de que maneira for, é preciso continuar a viver.
Arde-me a alma como se fosse uma mão, fisicamente.
Estou no caminho de todos e esbarram comigo.
Minha quinta na província,
Haver menos que um comboio, uma diligência e a decisão de partir entre mim e ti.
Assim fico, fico... Eu sou o que sempre quer partir,
E fica sempre, fica sempre, fica sempre,
Até à morte fica, mesmo que parta, fica, fica, fica...
Torna-me humano, ó noite, torna-me fraterno e solícito.
Só humanitariamente é que se pode viver.
Só amando os homens, as acções, a banalidade dos trabalhos,
Só assim - ai de mim! -, só assim se pode viver
Só assim, ó noite, e eu nunca poderei ser assim!

Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo,
Mas tudo ou sobrou ou foi pouco - não sei qual - e eu sofri.
Vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos,
E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse
Amei e odiei como toda a gente,
Mas para toda a gente isso foi normal e instintivo,
E para mim foi sempre a excepção, o choque, a válvula, o espasmo.

Vem, ó noite, e apaga-me, vem e afoga-me em ti.
Ó carinhosa do Além, senhora do luto infinito,
Mágoa externa da Terra, choro silencioso do Mundo.
Mãe suave e antiga das emoções sem gesto,
Irmã mais velha, virgem e triste, das ideias sem nexo,
Noiva esperando sempre os nossos propósitos incompletos,
A direcção constantemente abandonada do nosso destino,
A nossa incerteza pagã sem alegria,
A nossa fraqueza cristã sem fé,
O nosso budismo inerte, sem amor pelas coisas nem êxtases,
A nossa febre, a nossa palidez, a nossa impaciência de fracos,
A nossa vida, ó mãe, a nossa perdida vida...

Não sei sentir, não sei ser humano, conviver
De dentro da alma triste com os homens meus irmãos na terra.
Não sei ser útil mesmo sentindo, ser prático, ser quotidiano, nítido,
Ter um lugar na vida, ter um destino entre os homens,
Ter uma obra, uma força, uma vontade, uma horta,
Uma razão para descansar, uma necessidade de me distrair,
Uma coisa vinda directamente da natureza para mim.

Por isso sê para mim materna, ó noite tranquila...
Tu, que tiras o mundo ao mundo, tu que és a paz,
Tu que não existes, que és só a ausência da luz,
Tu que não és uma coisa, um lugar, uma essência, uma vida,
Penélope da teia, amanhã desfeita, da tua escuridão,
Circe irreal dos febris, dos angustiados sem causa,
Vem para mim, ó noite, estende para mim as mãos,
E sê frescor e alívio, ó noite, sobre a minha fronte...

Tu, cuja vinda é tão suave que parece um afastamento,
Cujo fluxo e refluxo de treva, quando a lua bafeja,
Tem ondas de carinho morto, frio de mares de sonho,
Brisas de paisagens supostas para a nossa angústia excessiva...
Tu, palidamente, tu, flébil, tu, liquidamente,
Aroma de morte entre flores, hálito de febre sobre margens,
Tu, rainha, tu castelã, tu, dona pálida, vem...

ÁLVARO DE CAMPOS, 22 DE MAIO DE 1916

quinta-feira, 21 de maio de 2020

FAZ HOJE 91 ANOS




Sim, sim, eu conheci-o.
Realmente era negro, luzidio,
Madrugador, jovial.
Sim, e de manhã cedo
Deveras se encontrava entre o arvoredo
Mas sem risadas (de ave fazem medo),
Nem ( que quer isso dizer?) de cristal.
Nesta altura, acabado o romantismo,
Um melro só a um melro é que é igual.

Quanto à história, nem cismo.
Acabou mal.
Com Natureza contra Bíblia, como,
Em épocas de um outro assomo,
Seria Bíblia contra a Natureza.
Com igual misticismo.
Veio o Junqueiro, filho da Certeza
E o melro morreu realmente
(Mas morreu de o fazerem gente)
Caindo do ar real e insciente
Num gesto de asa que despreza.

E o gesto de asa diz, - pois tudo fala
No romantismo, ainda quando cala:

"Sou um melro e não um sócio vil
Da Associação do Registo Civil.
Sou um melro totalmente, e existo
Alheio a Cristo ou a não-Cristo,
Sem dar lição alguma sobre nada.
Mera alimária alada,
Inconsciente, como o céu de estar
Onde está, de mover-me e de cantar.
E se morri, arre!, morri.
Com isso provo que vivi.
Morri: pois deixem-me morrer
Sem me quererem compreender.

"E quanto aos versos subversivos
De Igrejas e Escrituras,
Deixem-se disso: são motivos
De audácia que já nem são bravuras.
Vejam claro,
Escrevam raro,
Tenham verdade ao menos no sentir,
E então por certo me ouvirão a rir,
Madrugador, jovial,
Logo de manhã cedo
Cantando entre a verdade do arvoredo
E não entre a mentira universal.

FERNANDO PESSOA, 21 DE MAIO DE 1929

quarta-feira, 20 de maio de 2020

FAZ HOJE 99 ANOS



Sobre este plinto gravo o inútil verso
Que comemora a inútil emoção.
Se os impérios são pó, não é disperso
Breve esta inútil comemoração.

Por isso, escolho a hora em que contento
A emoção de escrever, e não o fim.
E fica o plinto no meu pensamento

Soletra, viandante, o verso posto
Como denúncia de um momento nulo
Na pedra: A morte passa ...
O ave atque vale de Catulo.

FERNANDO PESSOA, 20 DE MAIO DE 1921