domingo, 30 de setembro de 2012

FAZ HOJE 77 ANOS



Se é mister a doença ou a desgraça
Para que a alma egoísta se convença
Do que os outros sofrem, pela dura graça
Da própria dor sentida porque passa,
Venha a nós a desgraça ou a doença!

Para que eu, ignaro e alegre, saiba
Que é meu irmão todo o que sofre e geme,
É mister que me turbe a dor ou a raiva,
Venha a raiva depressa e que a dor caiba
Ao meu incerto espírito que treme!

FERNANDO PESSOA, 30 DE SETEMBRO DE 1935

sábado, 29 de setembro de 2012

FAZ HOJE 88 ANOS


Pouco importa de onde a brisa
Traz o olor que nela vem.
O coração não precisa 
De saber o que é que é o bem.

A mim me baste nesta hora
A melodia que embala.
Que importa se, sedutora,
As forças da alma cala?

Quem sou, p'ra que o mundo perca
Com o que penso a sonhar?
Se a melodia me cerca
Vivo só o me cercar...

FERNANDO PESSOA, 29 DE SETEMBRO DE 1926

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

FAZ HOJE 80 ANOS

Nada fica de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos 
Da irrespirável treva que nos pese
Da húmida terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.

Leis feitas 'státuas vistas, odes findas -
Tudo tem cova sua. Se nós. carnes
A que um íntimo sol dá sangue, temos
 Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos, nada. 

RICARDO REIS, 28 DE SETEMBRO DE 1932

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

FAZ HOJE 81 ANOS



Breve o dia, breve o ano, breve tudo.
Não tarda nada sermos.
Isso, pensando, me de a mente absorve
Todos mais pensamentos.
O mesmo breve ser da mágoa pesa-me,
Que, inda que mágoa é vida.



RICARDO REIS, 27 DE SETEMBRO SE 1931

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

FAZ HOJE 88 ANOS



AUDITA CAECANT

Dormimos o universo; a extensa mole
Da confusão das cousas nos engana,
Sonhos; e a ébria confluência humana
Prolixa ecoa-se de prole em prole.

O ouvido atento que se às portas cole
Onda suspeita deuses, só se ufana
Das pulsações do sangue em si, que irmana
Sem som com passos que a distância estiole.

Cegos que um louco guia, atravessamos
A inútil extensão do que não vemos,
Barulhando ervas húmida e ramos.

Em nossa mão a mão do louco temos
E qualquer cousa dada desejamos
Que pela mão funesta recebemos.

FERNANDO PESSOA, 26 DE SETEMBRO DE 1924




Nota: A tradução da expressão latina que intitula este poema é a seguinte "As coisas ouvidas fazem cegar". 

terça-feira, 25 de setembro de 2012

FAZ HOJE 88 ANOS


CANÇÃO


Silfos ou gnomos tocam?...
Roçam nos pinheirais
Sombras e bafos leves
De ritmos musicais.

Ondulam como em voltas
De estradas não sei onde,
Ou como alguém que entre árvores
Ora se mostra ou esconde.

Forma longínqua e incerta
Do que eu nunca terei...
Mal oiço, e quase choro,
Por que choro não sei.

Tão ténue melodia
Que mal sei se ela existe
Ou se é só o crepúsculo,
Os pinhais e eu estar triste.

Mas cessa como uma brisa
Esquece a forma aos seus ais;
E agora não há mais música
Do que a dos pinheirais.

FERNANDO PESSOA, 25 DE SETEMBRO DE 1914

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

FAZ HOJE 89 ANOS



Ouço passar o vento na noite.
Sente-se no ar, e alto, o açoite
De não sei quem em não sei quê.
Tudo se ouve nada se vê.

Ah, tudo é símbolo e analogia.
O vento que passa, esta noite fria.
São outra cousa que a noite e o vento -
Sombras de Vida e de Pensamento.

Tudo nos narra o que nos não diz.
Não sei que drama a pensar desfiz
Que a noite e o vento narrando são.
Ouvi. Pensando-o, ouvi-o em vão.

Tudo é uníssono e semelhante.
O vento cessa, e noite adiante,
Começa o dia e ignorado existo.
Mas o que foi não é nada disto.

FERNANDO PESSOA, 24 DE SETEMBRO DE 1923

domingo, 23 de setembro de 2012

FAZ HOJE 80 ANOS



Quase anónima sorris
E o sol doura o teu cabelo.
Por que é que, p'ra ser feliz,
É preciso não sabe-lo?

FERNANDO PESSOA, 23 DE SETEMBRO DE 1932

sábado, 22 de setembro de 2012

FAZ HOJE 77 ANOS



PEDROUÇOS


Quando eu era pequeno não sabia
Que cresceria.
Pelo menos não o sentia.

Naquela idade o tempo não existe.
Cada dia é a mesma mesa
Com o mesmo quintal ao fundo;
E quando se sente tristeza
Está tristeza, mas não se está triste.

Eu era assim
E todas as crianças deste mundo
Assim foram antes de mim.

O quintal grande estava dividido
Por uma frágil grade, alta, de tiras
Cruzadas, de madeirinha,
Em horta e em jardim.

Meu coração anda esquecido,
Mas não minha visão. De ela não tires,
Tempo, esse quadro onde o feliz que eu fui
Dá-me uma felicidade ainda minha!

Inútil teu frio curso flui
Para quem das lembranças se acarinha.

FERNANDO PESSOA, 22 DE SETEMBRO DE 1935


sexta-feira, 21 de setembro de 2012

FAZ HOJE 80 ANOS



Casa de campo, quarto sobre a estrada;
Noite não alta, mas deitei-me.Entreouço
Próximos guizos, carro, ou cavalgada.
Sonolento, remoço.

Mas bate-me, entre o sonho, o coração.
Quando eu morrer não faltará na estrada
(Minha mesma dormente confusão!)
Guizos, e o carro , ou cavalgada.

FERNANDO PESSOA, 21 DE SETEMBRO DE 1932

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

FAZ HOJE 78 ANOS



Ah, que maçada o piano
Eternamente a tocar
Lá em cima, no outro andar!

Ah, que tristeza o cessar!
Sempre era gente a tocar!
Sempre tinha companhia
Nessa constante arrelia.

Vizinha, se não morreu,
Que aquele piano seu
Volte de novo a maçar!
Sem ele penso e sou eu,
Com ele esqueço a sonhar...

Má música? Sim, mas há
Até na música má
Um sentimento de alguém.
Não sei quem o sente ou dá.
Não sei quem o dá ou tem.

Não deixe de me maçar
Com o contínuo tocar
Do seu piano frequente.
Ah, torne-me a arreliar
E mace-me eternamente!

A quem é só, tudo é mais
Que o que está naquilo que é.
Notas falsas, desiguais -
Não se importe: a minha fé,
Meu sonho, vão a reboque
Do que toca mal e até
Do piano do não sei quê...
Toque mal; mas toque, toque!

FERNANDO PESSOA, 20 DE SETEMBRO DE 1934


quarta-feira, 19 de setembro de 2012

FAZ HOJE 79 ANOS



Meu coração tardou. Meu coração
Talvez se houvesse amor nunca tardasse;
Mas, visto que, se o houve, o houve em vão,
Tanto faz que o amor houvesse ou não.
Tardou. Antes, de inútil, acabasse.

Meu coração postiço e contrafeito
Finge-se meu. Se o amor o houvesse tido,
Talvez, num rasgo natural de eleito,
Seu próprio ser do nada houvesse feito,
E sua própria essência conseguido.

Mas não. Nunca nem eu nem coração
Fomos mais que um vestígio de passagem
Entre um anseio vão e um sonho vão.
Parceiros em prestidigitação,
Caímos ambos pelo alçapão.
Foi esta a nossa vida e a nossa viagem.

FRENANDO PESSOA, 19 DE SETEMBRO DE 1933

terça-feira, 18 de setembro de 2012

FAZ HOJE 79 ANOS



Tenho tanto sentimento
Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.

Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.

FERNANDO PESSOA, 18 DE SETEMBRO DE 1933

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

FAZ HOJE 77 ANOS


UN SOIR À LIMA

Vem a voz da radiofonia e dá
A notícia num arrastamento vão:
"A seguir
Un Soir à Lima...

Cesso de sorrir...
Para-me o coração...

E, de repente,
Essa querida e maldita melodia
Rompe do aparelho inconsciente...
Numa memória súbita e presente
Minha alma se extravia...

O grande luar da África fazia
A enconsta arborizada alvinitente.

A sala  em nossa casa era ampla, e estava
Posta  onde, até ao mar, tudo se dava
À clara escuridão do luar ingente...
Mas só eu, à janela.
Minha mãe estava ao piano
E tocava...
Exactamente
Un Soir à Lima.

Meu Deus que longe, que perdido isso está!
Que é do seu alto porte?
Da sua voz continuamente acolhedora?
Do seu sorriso carinhoso e forte?
O que hoje há
Que mo recorda é isso que ouço agora:
Un Soir à Lima.
Prossegue na telefonia
A mesma, a mesma melodia
O mesmo Un Soir à Lima.

Seu cabelo grisalho era tão lindo
Sob a luz
E eu que nunca julguei que ela morresse
E me deixasse entregue a quem eu sou!
Morreu, mas eu sou sempre o seu menino.
Ninguém é homem para a sua mãe.

E inda através das lágrimas não falha
À memória que tenho
O recorte perfeito de medalha
Daquele perfeitíssimo perfil.
Chora, ao lembrar-te, mãe, romana e já grisalha,
Meu coração sempre infantil.
Vejo teus dedos no teclado e há
Luar lá fora eternamente em mim.
Tocas em meu coração, sem fim,
Un Soir à Lima.

"Os pequenos dormiram logo?"
"Ora, dormiram logo."
"Esta está quase a dormir"
E tu, sorrindo ao responder, continuavas
O que tocavas -
Atentamente tocavas -
Un Soir à Lima.

Tudo que fui quando não era nada,
Tudo o  que amei e sei só em verdade
Que o amei por não ter hoje estrada
Que tenha qualquer realidade,
Por não ter dele mais que a saudade -
Tudo isso vive em mim
Por luzes, música e a visão
Que não tem fim
Dessa hora eterna no meu coração,
Em que voltavas
A folha irreal da música a tocar
E eu te ouvia e via
Continuar
A eterna melodia
Que está
No fundo eterno desta nostalgia
De quando, mãe, tocavas
Un Soir à Lima.

E o aparelho indiferente
Traz da emissora inconsciente
Un Soir à Lima.

Eu não sabia então que era feliz.
Hoje, que o  já não sou, sei bem que o era.

"Esta também está a dormir..."
"Não está."
Ficámos todos a sorrir
E eu distraidamente vou
Continuando a ouvir,
Longe do luar que há
E que lá fora existe duro e só,
O que me faz sonhar sem o sentir,
O que hoje faz com que tenha de mim dó
Esse canto sem voz, teclado e brando
Que minha mãe estava tocando -
Um Soir à Lima.

Não ter aqui numa gaveta,
Não ter aqui numa algibeira,
Fechada, havida, completa,
Essa cena inteira!
Não poder arrancar
Do espaço, do tempo, da vida
E isolar
Num lugar
Da alma onde ficasse possuída
Eternamente
Viva, quente,
Essa sala, essa hora,
Toda a família e a paz  e a música que há 
Mas real como ali está,
Ainda, agora,
Quando, mãe, mãe, tocavas
Un Soir à Lima.

Mãe. mãe, fui teu menino
Tão bem dobrado
Na sua educação
E hoje sou o trapo que o Destino
Fez enrolado e atirado
Para um canto do chão.

Jazo, mesquinho,
Mas ao meu coração
Sobe, em torvelinho
A memória de quanto ouvi do que há
No que há de carícia, de lar, de ninho,
Ao relembrar o ouvi, hoje, meu Deus, sozinho
Un Soir à Lima.

Onde é que a hora, e o lar e o amor está
Quando, mãe, mãe, tocavas
Un Soir à Lima?

E num recanto de cadeira grande
Minha irmã,
Pequena e encolhida
Não sabe se dorme se não.

Eu tenho sido tanta coisa vil!
Tenho traído tanto do que sou!
Meu espírito sedento
De raciocinador subtil
Quantas vezes prolixamente errou!
Quantas vezes até o pensamento
Inanimadamente me enganou!

Já que não tenho lar,
Deixa-me estar
Nesta visão
Do lar de então
Deixa-me ouvir, ouvir, ouvir -
Eu à janela
Do nunca mais deixar de sentir,
Nessa sala, a nossa sala, quente
Da África ampla onde o luar está
Lá fora vasto e indiferente
Nem mal nem bem
E onde, no meu coração
Mãe. mãe
Tocas visivelmente
Tocas eternamente
Un Soir à Lima.

Meu padrasto
(Que homem, que alma, que coração!)
Reclinava o seu corpo basto
De atleta sossegado e são
Na poltrona maior
E ouvia, fumando e cismando,
E o seu olhar azul não tinha cor.
E minha irmã, criança,
No recanto da sua poltrona
Enrolada, ouvia a dormir
E a sorrir
Que estava alguém tocando
Se calhar uma dança...
E eu de pé, ante a janela
Via todo o luar de toda a África inundar
A paisagem e o meu sonhar.

Onde tudo isso está?
Un Soir à Lima,
Quebra-te, coração!

Mas entorpeço.
Não sei se vejo se adormeço,
Se sou quem fui,
Não sei se lembro, nem se esqueço.
Há qualquer coisa que indistinta flui
Entre o que eu sou e o que eu era
E é como um rio, ou uma brisa, ou um sonhar,
Qualquer coisa que não se espera,
Que se suspende de repente
E, do fundo aonde ia acabar,
Surge cada vez mais distintamente,
Num halo de suavidade
E nostalgia,
Onde o meu coração ainda está,
Um piano, uma presença, uma saudade...
Durmo encostado a essa melodia -
E oiço que minha mão toca,
Oiço, já com o sal das lágrimas na boca,
Un Soir à Lima.

O véu das lágrimas não cega.
Vejo, a chorar,
O que essa musica me entrega -
A mãe que eu tinha, o antigo lar,
A criança que fui,
O horror do tempo porque flui,
O horror da vida, porque é só matar.
Vejo, e adormeço,
E no torpor em que me esqueço
Estou vendo minha mãe tocar.
E essas mão brancas e pequenas,
Cuja carícia nunca mais me afagará,
Tocam ao piano, cuidadosas e serenas,
Un Soir à Lima.

Ah, vejo tudo claro!
Estou outra vez ali.
Afasto do luar externo e raro
Os olhos com que o vi.

Mas, quê? Divago, e a música acabou...
Divago como sempre divaguei
Sem ter na alma certeza de quem sou,
Nem verdadeira fé ou firme lei.

Divago, crio eternidades minhas
Num ópio de memória e de abandono
Entronizo fantásticas rainhas
Sem para elas ter um trono.

Sonho porque me banho
No rio ideal da música evocada.
Minha alma é uma criança esfarrapada
Que dorme num recanto obscuro.
De meu só tenho,
Na realidade certa e acordada,
Os trapos da minha alma abandonada
E a cabeça que sonha contra o muro.

Mas. mãe, não haverá
Um Deus que me não torne tudo vão,
Um outro mundo em que isso agora está?
Divago anda: tudo é ilusão.
Um Soir à Lima...

Quebra-te coração...

FERNANDO PESSOA, 17 DE SETEMBRO DE 1935



domingo, 16 de setembro de 2012

POEMA SEM DATA



Coroai-me de rosas,
Coroai-me em verdade 
De rosas -
Rosas que se apagam
Em fronte a apagar-se
Tão cedo!
Coroai-me de rosas
E de folhas breves.
E basta.

RICARDO REIS, ODE IX DO "LIVRO PRIMEIRO"


Nota: As odes do "Livro Primeiro"  foram publicadas, em conjunto, na revista "Athena" no dia 1/10/1924, todas sem data. Como, não existe nenhum poema, com data de 16 de Setembro, aproveitei para colocar no blogue, um dos mais belos e simples poemas do Ricardo Reis. 

sábado, 15 de setembro de 2012

FAZ HOJE 79 ANOS


Se já não torna a eterna primavera
Que em sonhos conheci,
O que é que o exausto coração espera
Do que não tem em si?

Se não há mais florir de árvores feitas
Só de alguém as sonhar,
Que coisas quer o coração perfeitas,
Quando e em que lugar?

Não: contentemo-nos com ter aragem
Que, porque existe, vem
Passar a mão sobre o alto da folhagem,
E assim nos faz um bem.

FERNANDO PESSOA, 15 DE SETEMBRO DE 1933

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

FAZ HOJE 93 ANOS

Do alto da tua sombra, a prumo sobre
A inconstância irreal de vida e dias,
Achei-me só e vi que as agonias
Da vida, o tédio as finda e a morte as cobre.

Ali, no alto de ser, sentir é nobre,
Despido de ilusões e de ironias.
Não sinto as mãos unidas, que estão frias,
Não sei de mim, o que fui era pobre.

Mas mesmo nessa altura de mistério
E abismo de ascensão, não encontrei
Paragem, conclusão ou refrigério.

Deixei atrás o acaso de viver,
O ser sempre outrem, a escondida lei,
Caos de existirmos, névoa de o saber.

FERNANDO PESSOA, 14 DE SETEMBRO DE 1919


quinta-feira, 13 de setembro de 2012

FAZ HOJE 80 ANOS


Depois que o som da treva, que é não tê-lo,
Passou, nuvem obscura, sobre o vale
E uma brisa afastando meu cabelo
Me diz que fale, ou me diz que cale,

A nova claridade veio, e o sol
Depois, ele mesmo, e tudo era verdade.
Mas quem me deu sentir e a sua prole?
Quem me vendeu nas hastas da vontade?

Nada. Uma nova obliquação da luz,
Interregno factício onde a erva esfeia.
E o pensamento inútil se conduz

Até saber que nada vale ou pesa,
E não sei se isto me ensimesma ou alheia.
Não sei se é alegria ou se é tristeza.

FERNANDO PESSOA, 13 DE SETEMBRO DE 1932

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

FAZ HOJE 82 ANO



Não sei se é amor que tens, ou amor que finges,
O que me dás. Dás-mo.Tanto me basta.
Já que o não sou por tempo
Seja eu jovem por erro.
Pouco os Deuses nos dão, e o pouco é falso.
Porém, se dão, falso que seja, a dádiva
É verdadeira. Aceito.
E a te crer me resigno.

RICARDO REIS, 12 DE SETEMBRO DE 1930

terça-feira, 11 de setembro de 2012

FAZ HOJE 99 ANOS


Quem pôs na minha voz, mero som cavo,
O milagre das palavras e da sua forma
E o milagre maior do seu sentido?
Minha voz, mero ruído,
Ilumina-se por dentro...

FERNANDO PESSOA, 11 DE SETEMBRO DE 1913

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

FAZ HOJE 82 ANOS



TRAPO

O dia deu em chuvoso.
A manhã, contudo, esteve bastante azul.
O dia deu em chuvoso.
Desde manhã eu estava um pouco triste.
Antecipação? tristeza? coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.

Bem sei: a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Dêem-me o céu azul e o sol visível.
Névoa, chuvas, escuros - isso tenho eu em mim.
Hoje quero só sossego.
Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efectivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.

Carinhos? afectos? São memórias...
É preciso ser-se criança para os ter...
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.

Boca bonita da filha do caseiro,
Polpa de fruta de um coração por comer...
Quando foi isso? Não sei...
No azul da manhã...

O dia deu em chuvoso.

ÁLVARO DE CAMPOS, 10 DE SETEMBRO DE 1930

domingo, 9 de setembro de 2012

FAZ HOJE 80 ANOS


COSTA DO SOL
I


Todas as coisas são impressionantes.
Enquanto houver no mundo sangue e rosas
Há-de haver sempre bons instantes
Em que se passam coisas sem ser coisas.

Meu coração, um solavanco, ou antes
Um intervalo consciente. Lousas
Cobrem os que como eu tinham rompantes
Em que iam à conquista das teimosas.

Mas o foguete é um símbolo que sobe
Para cair, depois de ruídos no alto, 
Mera cana caduca, até sobre

Quem o deitou... E que um garoto leva
Da rua - a cana ardida - é quanto falto
Que absurdo pirotécnico me eleva?

II


Deixo, deuses, atrás a dama antiga
(Com uma letra diferente fixo
O absurdo, e rio, porque sofro). Digo:
Deixo atrás, quem amei como um prefixo...

Outrora eu, que era anónimo e prolixo
(Dois adjectivos que de há muito sigo)
Amei por ter um coração amigo.
Amo hoje o que amo só porque o persigo.

Dêem-me vinho que um Horácio cante!
Quero esquecer o que de meu é meu...
Quero, sem que me mexa, ir indo adiante.

Estou no Estoril e olho para o céu...
Ah que ainda é certo aquele azul ovante
Que esplendeu astros sobre o mar egeu.

III

Somos meninos de uma primavera
De que alguém fez tijolos.Quando cismo
Tiro da cigarreira um misticismo
Que acendo e fumo como se o esquecera.

No teu ar de dormir nessa cadeira,
(Reparo agora, feito o exorcismo,
Que o terceiro soneto ergue do abismo)
És sempre a mesma, anónima, terceira...

Ó grande mar atlântico, desculpa!
Cuspi à tua beira três sonetos.
Sim, mas cuspi-os sobre a minha culpa.

Mulher, amor, alcova, sois tercetos!
Só vós ó mar  e céu nos libertais
Que qualquer trapo  incógnito franjais
.................................................................................
Sossego? Outrora? Ora adeus! Foi feita
No cárcere a Marília de Dirceu.
De realmente meu,só tenho eu.

Pudesse eu pôr um dique ao que em mim espreita
(No perfil de pálida imperfeita,
Recorte morto contra um vivo céu,


ÁLVARO DE CAMPOS, 9 DE SETEMBRO DE 1932

Notas: 1) - a linha ponteada pode fazer entender que o Poeta tencionava substituir os tercetos que se seguem.
          2) - Dá ideia que faltou fechar o parentsis,                porque,eventualmente, o Poeta não considerava o poema acabado.