segunda-feira, 30 de setembro de 2013

FERNANDO PESSOA E DEUS



Se a obra de Fernando Pessoa tem sido cada vez mais estudada e aprofundada, a sua vida íntima não o tem sido menos, entrando-se, no meu entender, no campo da descarada profanação! Desde o “Génio e a Loucura” até à “Misoginia e a homossexualidade”, tudo tem sido escrito e, na maioria dos casos, inventado.

Desde que o seu primeiro biógrafo (?), o João Gaspar Simões, “descobriu” que o Poeta era um “bêbado”, q eu chegava a passar fome, que tinha morrido com uma cirrose, tem sido um nunca acabar de invenções que, mesmo quando documentalmente rebatidas, têm, lamentavelmente, permanecido.

Há, no entanto, um aspecto que julgo que nunca foi abordado ou, quando o foi, criou uma perspectiva inversa da realidade: o relacionamento do Fernando Pessoa com Deus. O mais recente “quase biógrafo”, o brasileiro Cavalcantti , classificou-o de “Ateu”…

Creio que muitos confundem a obra heterónima com o pensamento do cidadão Fernando António Nogueira Pessoa o que, como é evidente, é um erro tremendo!
O que ele escreveu como Campos, Caeiro, Reis ou Soares, faz parte do que o Poeta designou como “Um drama em gente”, um drama em que o autor escreve as falas para os seus personagens. Ficções, ainda que das mais sublimes ficções que algum dia se criaram. O próprio autor o deixou escrito, na célebre carta de Janeiro de 1935 para o jovem crítico e director da revista “Presença” , Adolfo Casais Monteiro: “outrava-se” para escrever a obra dos seus principais, se não únicos, heterónimos. Cita, como exemplo, o Poema VIII do “Guardador de Rebanhos”, declarando que ele, Fernando Pessoa, nunca seria capaz de escrever tão desrespeitoso poema.

E no entanto, ele foi um Homem profundamente religioso! E um Homem religioso não tem de ser adepto ou praticante de uma qualquer Igreja organizada. O perguntar-se permanentemente sobre os “porquês”, os “para quês” e os “comos” da vida que se vive, é isso que faz um Homem ser religioso.

Toda a obra ortónima nos mostra essa angústia existencial, esse desejo de querer ir mais longe na sua relação com a vida. E só a sua leitura atenta bastaria para demonstrar o seu sentido religioso. Mas há muitas outras provas, das quais destaco um trecho de uma extensa carta para o seu amigo açoriano, Armando Cortes Rodrigues, com data de 19 de Janeiro de 1915:

“… E daí a minha “crise” toda. Não é crise para eu me lamentar. É a da se encontrar só quem se adiantou demais aos companheiros de viagem – desta viagem que os outros fazem para se distrair e que acho tão grave, tão cheia de termos de pensar no seu fim, de reflectir o que diremos ao Desconhecido para cuja casa a nossa inconsciência guia os nossos passos…. Viagem essa, meu querido Amigo, que é entre almas e estrelas, pela Floresta dos Pavores… e Deus, fim da estrada infinita, à espera no silêncio da Sua grandeza… “

Este documento, estranhamente esquecido pelos que tem escrito sobre o Poeta, é suficientemente claro e definitivo, para que possa ser esquecido.

Mas para demonstrar, através da Obra, o que pretendo, referirei, de seguida, alguns passos dos poemas a que eu chamarei “de Deus”. E são mais de 15.

Até o Eng. Álvaro de Campos:

           Ali não havia electricidade.
            Por isso foi à luz de uma vela mortiça
            Que li, inserto na cama,
            O que estava à mão para ler –
            As Bíblia, em português, porque (coisa curiosa) eram protestantes.
            E reli a Primeira Epístola aos Coríntios.
            Em torno de mim o sossego excessivo das noites de província
            Fazia um grande barulho ao contrário,
            Dava-me uma tendência de choro para a desolação.
             A Primeira Epístola aos Coríntios…
            Reli-a à luz de uma vela subitamente antiquíssima,
            E um grande mar de emoção chorava dentro de mim…

            Sou nada…
            Sou uma ficção…
            Que ando eu a querer de mim ou de tudo neste mundo?
            “Se eu não tivesse caridade”…

            E a soberana voz manda, do alto dos séculos,
            A grande mensagem com que a alma fica livre…
            “Se eu não tivesse caridade”..
            Meus Deus e eu não tenho caridade

Alguns exemplos do ortónimo:
1)      

  ASCENSÃO

            Quanto mais desço em mim mais subo em Deus…
            Sentei-me no lar da vida e achei-o frio,
            Mas pus tão alta fé nos sonhos meus
            Que ardente rio
            De Puro Compreender a alto Amor,
            Da chama espiritual e interior                                                
            Dou nova luz ao meu alheio olhar
            E às minhas faces cor…
            E esta fé, esta lívida alegria
            Com que, alma de joelhos, creio e adoro,
            É a minha própria sombra que me guia
            Para um fim que eu ignoro…
            Porque Deus faz de mim o seu altar
            Quando Ele me nasceu tal como sou,
            Se p´ra minha lama volvo um quasi-olhar
            Não me vejo onde estou.
            Eu tenho Deus em mim…Em Deus existo
            Quando crê, cega, acha-o minha fé calma…
            Maria-Virgem concebeu um Cristo
            Dentro em minha alma…
            Alma fria de Altura; que aos seus céus
            Dentro em si próprio acha… Para si morta
            Em Deus... Mas o que é Deus? E existe Deus?
            Isso que importa?


2)

            VISÃO

           Minha alma fica em si. O exterior
           É o que ela de comum com outros tem;
           O ponto em que se tocam e convém
           Às almas e aos sonhos.

          ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

           Quando não vejo e vejo Deus…
           Vejo a sombra de Deus…Além de mim
           Estou então…O individual é a minha
           Imagem
           Mas tudo em sua essência é ideia…A cor
           É a ideia,
           De modo que em tudo vejo Deus
           Mundo translúcido de Deus.


3)
         
            ALÉM DEUS

                     I

           Abismo

           Olho o Tejo de tal arte
           Que me esqueceu estar olhando

::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


           Perde tudo o ser, ficar,
           E do pensar se me some.
           Fico sem poder ligar
           Ser, ideia, alma de nome
           A mim, à terra e aos céus…

           E súbito encontro Deus.



                        III

         
           A Voz de Deus
           

           Brilha uma voz na noute…
           Dentro de Fora ouvi-a…
           “Ó Universo, eu sou-te”…

::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

          Cinzas de ideia e de nome
           E em mim, e a voz:”Ó mundo
           Sermente  em ti eu sou-me”
           Mero eco de mim, me inundo
           De ondas de negro lume
           Em que p’ra Deus me afundo.        


4)

           Cabeça augusta, que uma luz contorna,
           Que há entre mim e o mundo que me faz
           (Por que em espinhos a auréola se torna?)
           Ansiar a minha morte a tua paz?

           A tua história, - Pilatos ou Caifás
 Que tem? São sonhos que o narrar transtorna.
           Não é esse o Calvário a que te traz
Tua sina onde todo o fel se entorna.

Não. É em mim que se o Calvário ergueu.
É meu coração abandonado   
Que Ele, cabeça augusta, alto sofreu.

Quem na cruz onde está ermo e pregado
O pregou? Foi Romano ou foi Judeu?
Bate-me o coração. Meu Deus, fui eu!


Fechando com chave de ouro, eis o que escreveu o Bernardo Soares, no Livro do Desassossego:

                                    PRECE

               

Senhor, que és o céu e a terra, e que és a vida e a morte! O Sol és tu a Lua és tu e o vento és tu! Tu és os nossos corpos e as nossas almas e o nosso amor és tu também. Onde nada mais está tu habitas e onde tudo está, - (o teu templo) -, eis o teu corpo.


Dá-me alma para te servir e alma para te amar. Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra, ouvidos para te ouvir no vento e no mar, e mãos para trabalhar em teu nome.

Torna-me puro como a água e alto como o Céu. Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. Faze com que eu saiba amar os outros como irmãos e servir-te como a um pai.

Minha vida seja digna da tua presença, Meu corpo seja digno da terra, tua cama. Minha alma possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao lar.

Torna-me grande como o Sol, para que eu te possa adorar em mim; torna-me puro como a Lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver sempre em mim e rezar-te e adorar-te.



         

Os poemas citados, mostram, com muita clareza, o modo como o Fernando Pessoa encarava a questão de Deus. Mesmo no primeiro dos poemas referido, o Álvaro de Campos demonstra que o Poeta conhecia, pormenorizadamente, a Bíblia. E só quem acredite na Bíblia a lê.


FERNANDO RANITO, 30 DE SETEMBRO DE 2013

FAZ HOJE 80 ANOS




Se é mister a doença ou a desgraça
Para que a alma egoísta se convença
Do que outros sofrem, pela dura graça
Da própria dor sentida por que passa, 
Venha a nós a desgraça ou a doença!

Se para que eu, ignaro e alegre, saiba
Que é meu irmão todo o que sofre e geme,
Venha a raiva depressa e que a dor caiba
Ao meu incerto espírito que treme!


FERNANDO PESSOA, 30 DE SETEMBRO DE 1933

domingo, 29 de setembro de 2013

FAZ HOJE 93 ANOS




Eu no tempo não choro que me leve
A juventude, o já encanecer
A cabeça que pouco ainda esteve
Sob o Sol solto e a tarde a arrefecer.

Nem choro que não me ames, que faleça
O amor que vi em ti, que também haja
Uma tarde do amar, que desfaleça
E a noite fique, (...)

Mais que tudo choro já não te amar,

Sim, choro a tragédia de não ser o mesmo na alma,
De te ser infiel sem infidelidade,
De me ter esquecido de ti sem propriamente te aborrecer.

Não é o tempo ido em que te amei que choro.
Choro não te amar já por isso ser natural.
Choro ter-te esquecido, choro não me poder lembrar
Com saudade do tempo em que te amei.

Isso é que choro, sim, com as verdadeiras lágrimas
Que contém em si os piores mistérios —
A morte essencial das cousas,
O acabar das almas, mais grave que o dos corpos,
O abismo onde a única esperança é poder haver Deus
E um outro sentido desconhecido a tudo que se teve e se foi
Um outro lado, nem côncavo nem convexo à curva da vida.

FERNANDO PESSOA, 29 DE SETEMBRO DE 1920

sábado, 28 de setembro de 2013

FAZ HOJE 80 ANOS




Se acaso, alheado até do que sonhei,
Me encontro neste mundo a sós comigo,
E, fiel ao que eu mesmo desprezei,
Meus passos falsos verdadeiros sigo,

Desperta em mim, contrário ao que esperei
Desta espécie de fuga, ou só abrigo,
Não o ajustar-me com a externa lei,
Mas o essa lei tomar como castigo.

Então, liberto já pela esperança
Deste mundo de formas e mudança,
Um pouco atinjo pela dor e a fé

Outro mundo, em que sonho e vida são
Num nada nulo, igual em escuridão,
E ao fim de tudo surge o Sol do que é.


FERNANDO PESSOA, 28 DE SETEMBRO DE 1933

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

FAZ HOJE 99 ANOS




A MÚMIA

IV

Único sob as luzes 
E Pã entre sombras de árvores 
Toca que flauta? Nenhuma 
São o que eu sonho as avenas 
E flores grandes monótonas 
Boiando em mortos tanques 
As grades iguais que contornam 
A entrada para o palácio... 

Portões para cidades desertas 
As Horas colares de pedras falsas 
E tudo numa só cavalgada para o excesso de mim 
Entre altos ramos. 



Toda orquídea a minha consciência de mim 
E entre espezinhamentos de púrpuras 
Os séquitos abandonaram os Reis 
Porque, escorrendo-me entre sonhos de parapeito 
Sobre ermas planícies de arvoredos e rios 
As mãos cruzadas sobre o peito 
E o gesto parado de não querer nada 
Salvo (um relógio distante dando horas) 
A sorte morta a cores de vitrais esquecidos.


FERNANDO PESSOA, 26 DE SETEMBRO DE 1914

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

FAZ HOJE 81 ANOS




A névoa sobe à tona irreal da Hora, 
Desfolha, cousa a cousa, a Nitidez... 
Alheia a mim, em mim minha alma chora 
Saudosa de uma ausente eterna aurora, 
E sente-se penumbra e fluidez. 

Eu que(m) sou? Névoa que não se torna 

Realidade à sua própria dor... 
Olho minha alma... Nada a contorna, 
E sobre a mim a Tarde mais entorna 
Seu diluído sonho exterior... 

Pesa-me nos ombros todo o meu passado; 

Sou o que fui sentindo-se o que sou... 


FERNANDO PESSOA, 25 DE SETEMBRO DE 1932

terça-feira, 24 de setembro de 2013

FAZ HOJE 86 ANOS




Ah, nunca, por meu bem ou por meu mal, 
Converti minha dor 
Em dor universal! 
Por eu sofrer não sofre quem não sofre... 

Ditosos os que podem, pervertendo 
Seu pranto em dor de tudo 
'Star assim convivendo, 
Ainda que só com a imaginação. 
São humanos, e eu não. 

Felizes os que podem erigir 
Sua alma em universo 
E sofrer a expandir! 
Quanto mais sofro, mais pertenço a mim. 
Choro, e não sou afim. 

Meu coração não pode ter a crença, 
Por sofrer, que todo o orbe 
Vive uma dor imensa. 
Sofro sem outros, sem pesar nem dó, 
Sofro eu, sofro só. 

Só gozo a liberdade indefinida 
De não ter a ilusão 
De que sou toda a vida, 
De que sou símbolo, eu que só isto sei: 
Nada sou nem serei. 

Alheia a mim a humanidade vasta 
Ri, com pencas de choro. 
E a alegre vida arrasta. 
As almas altas sofrem sem trocar 
Padecer por amar. 


FERNANDO PESSOA, 24 DE SETEMBRO DE 1927

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

FAZ HOJE 79 ANOS


Não sei qual o caminho - se o que passa
Por onde entre o arvoredo o atalho vai,
Se o que é a estrada extensa, que se traça
Como num vinco na terra, de onde sai.

Não sei, não sei. Porque ou atalho ou estrada
São terra, e o que importa é como andar;
Nem pesa muito a estrada ir dar a nada,
Nem o atalho a nada ir dar.

Vale só o quem anda, que é quem vive.
Assim, adulto do que quis fazer,
Vou caminhando para o que já tive
Sabendo bem o que não poderei ter.

FERNANDO PESSOA, 23 DE SETEMBRO DE 1934

domingo, 22 de setembro de 2013

FAZ HOJE 80 ANOS

A Criança que fui chora na estrada,
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.

Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.

Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,

Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E ao ver-me tal qual fui ao longe, achar 
Em mim um pouco de quando era assim.

FERNANDO PESSOA, 22 DE SETEMBRO DE 1933

sábado, 21 de setembro de 2013

FAZ HOJE 83 ANOS



Chega através do dia de névoa alguma coisa do esquecimento, 
Vem brandamente com a tarde a oportunidade da perda. 
Adormeço sem dormir, ao relento da vida.

É inútil dizer-me que as acções têm consequências. 
É inútil eu saber que as acções usam consequências. 
É inútil tudo, é inútil tudo, é inútil tudo.

Através do dia de névoa não chega coisa nenhuma.

Tinha agora vontade 
De ir esperar ao comboio da Europa o viajante anunciado, 
De ir ao cais ver entrar o navio e ter pena de tudo.

Não vem com a tarde oportunidade nenhuma.

ÁLVARO DE CAMPOS, 21 DE SETEMBRO DE 1930

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

FAZ HOJE 79 ANOS




Bem sei que há ilhas lá ao sul de tudo
Onde há paisagens que não pode haver.
Tão belas que são como que o veludo
Do tecido que o mundo pode ser.

Bem sei. Vegetações olhando o mar,
Coral, encostas, tudo o que é a vida
Tornado amor e luz, o que o sonhar
Dá à imaginação anoitecida.

Bem sei. Vejo isso tudo. O mesmo vento
Que ali agita os ramos em torpor
Passa de leve por meu pensamento
E o pensamento julga que é amor.

Sei, sim, é belo, é longe, é impossível,
Existe, dorme, tem a cor e o fim,
E, ainda que não haja, é tão visível
Que é parte natural de mim.

Sei tudo, sei, sei tudo. E sei também
Que não é lá que há isso que lá está.
Sei qual é a luz que essa paisagem tem
E qual o mar por que se vai p'ra lá.





FERNANDO PESSOA, 20 DE SETEMBRO DE 1934

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

FAZ HOJE 101 ANOS




VISÃO

Minha alma fica em si. O exterior
É o que ela de comum com outros tem;
O ponto em que se tocam e convém
As almas e os seus sonhos.

Tudo é ver. As ideias, o abstracto
Que há em mim é também visível,
Só que vê-lo parece não ser ver
Pensar é ver.

Quando não vejo, e vejo Deus...
Vejo a sombra de Deus... Além de mim
Estou então... O individual é à minha
Imagem

Mas tudo, em sua essência, é ideia... A cor
É ideia,
De modo que em tudo vejo Deus
Mundo translúcido de Deus.



FERNANDO PESSOA, 19 DE SETEMBRO DE 1912

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

FAZ HOJE 96 ANOS




ABDICAÇÃO

I

Sombra fugaz, vulto da apetecida
Imagem de um ansiado e incerto bem,
Aereamente e aladamente vem
E um pouco abranda em mim o horror da vida.

O esforço inútil, a penosa lida,
De que, salvo sofrer, nada provém,
O receio, a incerteza e o desdém
Mitiga e sara, como a quem olvida.

Irreal embora, o teu momento é teu.
Nesse minuto, em que deveras prendes
Toda a alma, e és o seu sol e o seu céu,

És toda a vida, e o resto é a sombra e o trilho.
'Splende em verdade, ó sombra, enquanto 'splendes,
E eu morra para mim nesse teu brilho.

II

A minha vida é um barco abandonado,
Infiel, no ermo porto, ao seu destino.
Porque não ergue ferro e segue o atino
De navegar, casado com o seu fado?

Ah, falta quem o lance ao mar, e alado
Torne o seu vulto em velas; peregrino
Frescor de afastamento, no divino
Amplexo da manhã, puro e salgado.

Morto corpo da acção, sem a vontade
Que o viva, vulto estéril de viver,
Boiando á tona inútil da saudade -

Os limos esverdeiam tua quilha,
O vento embala-te sem te mover,
E é para além do mar a ansiada Ilha.

III

Entre o abater rasgado dos pendões
E o cessar dos clarins na tarde alheia,
A derrota ficou como uma cheia
Do mal cobriu os vagos batalhões.

Foi em vão que o Rei louco os seus varões
Trouxe ao prolixo prélio, sem a ideia.
Água que mão infiel verteu na areia.
Tudo morreu, sem rasto e sem razões.

A noite cobre o campo, que o Destino
Com a morte tornou abandonado.
Cessou, com cessar tudo, o desatino.

Só no luar que nasce os pendões rotos
'Strelam no absurdo campo desolado
Uma derrota heráldica de ignotos.

IV

São vãos, vãos o meu sonho e a minha vida,
As imagens que busco, dor-recreio,
Para o meu ócio de cansaço cheio,
Para o meu ser deposto e fé perdida.

Nada vale. Renova a despedida
Todos os dias renovada, ó anseio
Que nem em ti sabes querer, baqueio
Surdo e ignóbil da púrpura e da lida.

Réu confesso da tua impenitente
Indecisão, de inútil reprovada,
E, reprovada, vil por persistente,

Aceita o nada a que te o Fado obriga,
E abdica, qual rainha destronada
Que foi mendiga, e torna a ser mendiga.

V

Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho.
 Eu sou um rei
Que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.

Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mãos viris e calmas entreguei;
E meu ceptro e coroa - eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços

Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.

Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.

VI

Forma inútil, que surges vagarosa
Do meu caminho, e aumentas minha dor:
Tua postiça luz não tem calor,
Teu vulto esfolha-se, como uma rosa.

Porque tão falsamente piedosa
Na hora mais negra do meu amargor
Vens com teu brilho errar o meu torpor
Que mais valia que esta 'sp'rança ansiosa?

Por que a mão irreal para mim 'stendes
Se não me guiarás, nem me conheces?
Se nada podes dar, para que 'splendes?

Ah, deixa ao menos imitar o sono
Meu ser, (morto) na 'strada onde tu desces,
Sozinho ao menos com seu abandono!


VII

Com a expressão a dor menos se apaga
E a dor maior se anima, como o vento
Apaga o lume frágil de um momento,
E a grande chama sacudindo afaga.

Toda a esperança morta, a ânsia vaga,
A mágoa certa do meu pensamento,
Com exprimir-se, mais conhece o aumento,
Porque é consciente e com mais (…)

Mas não dizer a dor é ter só dor
Dizê-la é aceitá-la, e aceitá-la
É por presente tê-la, a ter maior.



FERNANDO PESSOA, 18 DE SETEMBRO DE 1917

terça-feira, 17 de setembro de 2013

FAZ HOJE 78 ANOS






UN SOIR À LIMA

Vem a voz da radiofonia e dá
A notícia num arrastamento vão:
“A seguir
Un soir à Lima “...

Cesso de sorrir...
Pára-me o coração...
E, de repente,
Essa querida e maldita melodia
Rompe do aparelho inconsciente.
Numa memória súbita e presente
Minha alma se extravia....
O grande luar da África fazia
A encosta arborizada alvinitente.

A sala em nossa casa era ampla, e estava
Posta onde, até ao mar, tudo se dava
À clara escuridão do luar ingente...
Mas só eu, à janela.
Minha mãe estava ao piano
E tocava.
Exactamente
Un Soir à Lima.

Meu Deus, que longe, que perdido, que isso está!
Que é do seu alto porte?
Da sua voz continuamente acolhedora?
Do seu sorriso carinhoso e forte?
O que hoje há
Que mo recorda é isto que oiço agora
Un Soir à Lima.
Prossegue na radiofonia
A mesma, a mesma melodia
O mesmo “Un Soir à Lima”.

Seu cabelo grisalho era tão lindo
Sob a luz
E eu que nunca julguei que ela morresse
E me deixasse entregue a quem eu sou!
Morreu, mas eu sou sempre o seu menino.
Ninguém é homem para a sua mãe!
E inda através de lágrimas não falha
À memória que tenho
O recorte perfeito da medalha
Daquele perfeitíssimo perfil.
Chora, ao lembrar-te, mãe, romana e já grisalha,
Meu coração teu e infantil.
Vejo teus dedos no teclado e há
Luar lá fora eternamente em mim.
Tocas em meu coração, sem fim,
Un Soir à Lima.

O silêncio fatal das coisas findas
As tuas mãos pequenas e tão lindas
Com escrúpulo risonho e familiar
Com um sorriso em que não há
Nada senão o eternamente humano
Tiravas da quietude o piano
Un Soir à Lima.

Tinhas, perfil, um rosto de medalha
Eras de frente, e olhando, a minha mãe
Como hoje o teu olhar me falha
E o teu perfil me lembra bem.

“Os pequenos dormiram logo?”
“Ora, dormiram logo”.
“Esta está quasi a dormir”
E tu, sorrindo e respondendo continuavas
O que tocavas -
Atentamente tocavas
Un Soir à Lima.

Tudo que fui quando não era nada,
Tudo que amei e sei só eu verdade
Que o amei por não ter hoje estrada,
Que tenha qualquer realidade.
Por não ter dele mais que a saudade -
Tudo isso vive em mim
Por luzes, música e a visão
Que não tem fim
Dessa hora eterna no meu coração,
Em que voltavas
A folha irreal da música a tocar
E eu te ouvia e via
Continuar
A eterna melodia
Que está
No fundo eterno desta nostalgia
De quando, mãe, tocavas
Un Soir à Lima.

E o aparelho indiferente
Traz da emissora inconsciente
Un Soir à Lima.

Eu não sabia então que era feliz.
Hoje, que o já não sou, sei bem que o era.

“Esta também está a dormir…”
“Não está”.
Ficámos todos a sorrir
E eu distraidamente vou
Continuando a ouvir,
Longe do luar que há
E que lá fora existe duro e só,
O que me faz sonhar sem o sentir,
O que hoje faz que tenha de mim dó
Esse canto sem voz, teclado e brando
Que minha mãe estava tocando -
Un Soir à Lima.

Não ter aqui numa gaveta,
Não ter aqui numa algibeira,
Fechada, haurida, completa,
Essa cena inteira!
Não poder arrancar
Do espaço, do tempo, da vida
E isolar
Num lugar
Da alma onde ficasse possuída
Eternamente
Viva, quente,
Essa sala, essa hora,
Toda a família e a paz e a música que há
Mas real como ali está
Ainda, agora,
Quando, mãe, mãe, tocavas
Un Soir à Lima.

Mãe, mãe, fui teu menino
Tão bem dobrado
Na sua educação
E hoje sou o trapo que o Destino
Fez enrolado e atirado
Para um canto do chão.
Jazo, mesquinho,
Mas ao meu coração
Sobe, num torvelinho
A memória de quanto ouvi do que há
No que há de carícia, de lar, de ninho,
Ao relembrar o ouvi, hoje, meu Deus, sozinho,
Un Soir à Lima.

Onde é que a hora, e o lar e o amar está
Quando, mãe, mãe, tocavas
Un Soir à Lima?

E num recanto de cadeira grande
Minha irmã,
Pequena e encolhidinha
Não sabe se dorme se não.
Eu tenho sido tanta coisa vil!
Tenho traído tanto do que sou!
Meu espírito sedento
De raciocinador subtil
Quantas vezes prolixamente errou!
Quantas vezes até o pensamento
Inanimadamente me enganou!

Já que não tenho lar,
Deixa-me estar
Nesta visão
De então,
Deixa-me ouvir, ouvir, ouvir -
Eu à janela
Do nunca mais deixar de sentir,
Nessa sala, a nossa sala, quente
Da África ampla onde o luar está
Lá fora vasto e indiferente
Nem mal nem bem
E onde, no meu coração
Mãe, mãe
Tocas visivelmente,
Tocas eternamente
Un Soir à Lima.

A minha raiva de animal humano
A quem tiraram a mãe,
E não tem
Para o menino que lhe na alma há,
Para lhe encher o coração,
Mais que esta visão -
As tuas mãos pequenas pelo piano
Quando, oh meu Deus, tocavas
Un Soir à Lima.

Ai, mas é engano.
Aqui sou velho
Não há sala nem há piano
Nem tu existes a tocar.
Há um aparelho mudo
De onde um som vem de longe, e dói.
Como é que eu te darei um beijo agora?

Eu poderia, vindo da janela,
Como tantas vezes fiz

O raciocinador exacto
Cuja alma está em mil pedaços,
Em mil pedaços que nem há...
Deixa-me dormir
E sonhar de estar vendo, a ouvir,
Un Soir à Lima.

E era nesta calma,
Nesta felicidade
Em que existia uma alma
(Meu Deus, que saudade!),
Que, sob a luz que dourava,
(Hoje onde é que isso está?)
Longe de onde o luar prateava,
Minha mãe tocava
Medalha atenta e humana ao piano,
Un Soir à Lima.

Desde então
Tenho atravessado
Muitas vidas.
As mais das vezes tenho errado
Meu coração
Pesa de coisas esquecidas.
Desde quando
Nesse brando
Conforto do meu lar extinto
Eu, à janela, ouvia, hirto e sonhando,
Ermo e indistinto,
O que há
Em toda a música de intuição e instinto,
Quanto tenho deixado morrer
Dentro do que quis ser,
Quanto tenho deixado
Só pensado,
Quanto, quanto,
Tem sido para mim somente sonho,
Somente o encanto,
Tristemente risonho
De o ter sonhado,
Quem sabe se a saudade
Transmutada num devaneio meio humano
De quanto nessa noite está,
Longínqua, em que, mamã, ao piano
Tocavas, sob a crua claridade,
Un Soir à Lima.

Pesa-me o coração. Um torpor denso
Ocupa-me a consciência de (...)
E um frio informe, desolado e denso
Não me deixa pensar.
Num baloiçar-me, num embalar
Relembro tudo, relembro em vão.
Meu Deus, isso tudo onde está?
Un Soir à Lima...
Quebra-te coração!...

Meu padrasto
(Que homem! que alma! que coração!)
Reclinava o seu corpo basto
De atleta sossegado e são
Na poltrona maior
E ouvia, fumando e cismando,
E o seu olhar azul não tinha cor.
E minha mãe, criança,
No recanto da sua poltrona
Enrolada, ouvia a dormir
E a sorrir
Que estava alguém tocando
Se calhar uma dança.
E eu, de pé, ante a janela
Via todo o luar de toda a África inundar
A paisagem e o meu sonhar.

Onde tudo isso está!
Un Soir à Lima,
Quebra-te, coração!
Essa mão pequenina e branca,
Que nunca mais me afagará,
Sorrias, rindo, para mim
Esse sorrir que já teve fim,
E continuavas tocando
Un Soir à Líma.

E eu que nunca julguei que tu morresses
E me deixasses só com o que eu sou...

E é uma emissora indiferente
Que por um aparelho inconsciente
Em verdadeira música me dá
A angústia viva que me vem
De te ver, por me lembrar,
Minha mãe, minha mãe,
Tão tranquila, tocar
Un Soir à Lima.

Mas entorpeço.
Não sei se vejo, se adormeço,
Se sou quem fui,
Nem sei se lembro, nem se esqueço.
Há qualquer coisa que indistinta flui
Entre quem sou e o que eu era
E é como um rio, ou uma brisa, ou um sonhar,
Qualquer coisa que não se espera,
Que se suspende de repente
E, do fundo aonde ir acabar,
Surge, cada vez mais distintamente,
Num halo de suavidade
E nostalgia,
Onde o meu coração ainda está,
Um piano, uma presença, uma saudade...
Durmo encostado a essa melodia -
E oiço que minha Mãe toca,
Oiço, já com o sal das lágrimas na boca,
Un Soir à Lima.

O véu das lágrimas não cega.
Vejo, a chorar,
O que essa música me entrega -
A mãe que eu tinha, o antigo lar,
A criança que fui,
O horror do tempo porque flui,
O horror da vida, porque é só matar.
Vejo, e adormeço
Num torpor em que me esqueço
Que existo ainda neste mundo que há..
Estou vendo minha mãe tocar.
E essas mãos brancas e pequenas,
Cuja carícia nunca mais me afagará,
Tocam ao piano, cuidadosas e serenas,
Un Soir à Lima.

Ah, vejo tudo claro!
Estou outra vez ali.
Afasto do luar externo e raro
Os olhos com que o vi.

Mas quê? Divago, e a música acabou..
Divago como sempre divaguei
Sem ter na alma certeza de quem sou,
Nem verdadeira fé ou firme lei.

Divago, crio eternidades minhas
Num ópio de memória e de abandono.
Entronizo fantásticas rainhas
Sem para elas ter o trono.

Sonho porque me banho
No rio irreal da música evocada.
Minha alma é uma criança esfarrapada
Que dorme num recanto obscuro.
De meu só tenho,
Na realidade certa e acordada,
Os trapos da minha alma abandonada
E a cabeça que sonha contra o muro.

Mas, mãe, não haverá
Um Deus que me não torne tudo vão,
Um outro mundo em que isso agora está?
Divago ainda: tudo é ilusão.
Un soir à Lima...

Quebra-te, coração...



FERNANDO PESSOA, 17 DE SETEMBRO DE 1935