Se
a obra de Fernando Pessoa tem sido cada vez mais estudada e aprofundada, a sua vida
íntima não o tem sido menos, entrando-se, no meu entender, no campo da
descarada profanação! Desde o “Génio e a Loucura” até à “Misoginia e a
homossexualidade”, tudo tem sido escrito e, na maioria dos casos, inventado.
Desde
que o seu primeiro biógrafo (?), o João Gaspar Simões, “descobriu” que o Poeta
era um “bêbado”, q eu chegava a passar
fome, que tinha morrido com uma cirrose, tem sido um nunca acabar de invenções
que, mesmo quando documentalmente rebatidas, têm, lamentavelmente, permanecido.
Há,
no entanto, um aspecto que julgo que nunca foi abordado ou, quando o foi, criou
uma perspectiva inversa da realidade: o relacionamento do Fernando Pessoa com
Deus. O mais recente “quase biógrafo”, o brasileiro Cavalcantti , classificou-o
de “Ateu”…
Creio
que muitos confundem a obra heterónima com o pensamento do cidadão Fernando
António Nogueira Pessoa o que, como é evidente, é um erro tremendo!
O
que ele escreveu como Campos, Caeiro, Reis ou Soares, faz parte do que o Poeta
designou como “Um drama em gente”, um drama em que o autor escreve as falas
para os seus personagens. Ficções, ainda que das mais sublimes ficções que
algum dia se criaram. O próprio autor o deixou escrito, na célebre carta de
Janeiro de 1935 para o jovem crítico e director da revista “Presença” , Adolfo
Casais Monteiro: “outrava-se” para escrever a obra dos seus principais, se não
únicos, heterónimos. Cita, como exemplo, o Poema VIII do “Guardador de
Rebanhos”, declarando que ele, Fernando Pessoa, nunca seria capaz de escrever
tão desrespeitoso poema.
E
no entanto, ele foi um Homem profundamente religioso! E um Homem religioso não
tem de ser adepto ou praticante de uma qualquer Igreja organizada. O
perguntar-se permanentemente sobre os “porquês”, os “para quês” e os “comos” da
vida que se vive, é isso que faz um Homem ser religioso.
Toda
a obra ortónima nos mostra essa angústia existencial, esse desejo de querer ir
mais longe na sua relação com a vida. E só a sua leitura atenta bastaria para
demonstrar o seu sentido religioso. Mas há muitas outras provas, das quais
destaco um trecho de uma extensa carta para o seu amigo açoriano, Armando
Cortes Rodrigues, com data de 19 de Janeiro de 1915:
“…
E daí a minha “crise” toda. Não é crise para eu me lamentar. É a da se
encontrar só quem se adiantou demais aos companheiros de viagem – desta viagem
que os outros fazem para se distrair e que acho tão grave, tão cheia de termos
de pensar no seu fim, de reflectir o que diremos ao Desconhecido para cuja casa
a nossa inconsciência guia os nossos passos…. Viagem essa, meu querido Amigo,
que é entre almas e estrelas, pela Floresta dos Pavores… e Deus, fim da estrada
infinita, à espera no silêncio da Sua grandeza… “
Este
documento, estranhamente esquecido pelos que tem escrito sobre o Poeta, é suficientemente
claro e definitivo, para que possa ser esquecido.
Mas
para demonstrar, através da Obra, o que pretendo, referirei, de seguida, alguns
passos dos poemas a que eu chamarei “de Deus”. E são mais de 15.
Até
o Eng. Álvaro de Campos:
Ali não havia electricidade.
Por isso foi à luz de uma vela mortiça
Que li, inserto na cama,
O que estava à mão para ler –
As Bíblia, em português, porque (coisa curiosa) eram protestantes.
E reli a Primeira Epístola aos
Coríntios.
Em torno de mim o sossego excessivo das noites de província
Fazia um grande barulho ao contrário,
Dava-me uma tendência de choro para a desolação.
A Primeira Epístola aos Coríntios…
Reli-a à luz de uma vela subitamente antiquíssima,
E um grande mar de emoção chorava dentro de mim…
Sou nada…
Sou uma ficção…
Que ando eu a querer de mim ou de tudo neste mundo?
“Se eu não tivesse caridade”…
E a
soberana voz manda, do alto dos séculos,
A grande mensagem com que a alma fica livre…
“Se eu não tivesse caridade”..
Meus Deus e eu não tenho caridade…
Alguns
exemplos do ortónimo:
1)
ASCENSÃO
Quanto mais desço em mim mais subo em Deus…
Sentei-me no lar da vida e achei-o frio,
Mas pus tão alta fé nos sonhos meus
Que ardente rio
De Puro Compreender a alto Amor,
Da chama espiritual e interior
Dou nova luz ao meu alheio olhar
E às minhas faces cor…
E esta fé, esta lívida alegria
Com que, alma de joelhos, creio e adoro,
É a minha própria sombra que me guia
Para um fim que eu ignoro…
Porque Deus faz de mim o seu altar
Quando Ele me nasceu tal como sou,
Se p´ra minha lama volvo um quasi-olhar
Não me vejo onde estou.
Eu tenho Deus em mim…Em Deus existo
Quando crê, cega, acha-o minha fé calma…
Maria-Virgem concebeu um Cristo
Dentro em minha alma…
Alma fria de Altura; que aos seus céus
Dentro em si próprio acha… Para si morta
Em Deus... Mas o que é Deus? E existe Deus?
Isso que importa?
2)
VISÃO
Minha alma fica em si. O exterior
É o que ela de comum com outros tem;
O ponto em que se tocam e convém
Às almas e aos sonhos.
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Quando não vejo e vejo Deus…
Vejo a sombra de Deus…Além de mim
Estou então…O individual é a minha
Imagem
Mas tudo em sua essência é ideia…A cor
É a ideia,
De modo que em tudo vejo Deus
Mundo translúcido de Deus.
3)
ALÉM DEUS
I
Abismo
Olho o
Tejo de tal arte
Que me esqueceu estar olhando
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Perde tudo o ser, ficar,
E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar
Ser, ideia, alma de nome
A mim, à terra e aos céus…
E súbito encontro Deus.
III
A Voz de Deus
Brilha uma voz na noute…
Dentro de Fora ouvi-a…
“Ó Universo, eu sou-te”…
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Cinzas de ideia e de nome
E em mim, e a voz:”Ó mundo
Sermente
em ti eu sou-me”
Mero eco de mim, me inundo
De ondas de negro lume
Em que p’ra Deus me afundo.
4)
Cabeça augusta, que uma luz contorna,
Que há entre mim e o mundo que me faz
(Por que em espinhos a auréola se torna?)
Ansiar a minha morte a tua paz?
A tua história, - Pilatos ou Caifás
Que tem? São sonhos que o narrar transtorna.
Não é esse o Calvário a que te traz
Tua
sina onde todo o fel se entorna.
Não.
É em mim que se o Calvário ergueu.
É
meu coração abandonado
Que
Ele, cabeça augusta, alto sofreu.
Quem
na cruz onde está ermo e pregado
O
pregou? Foi Romano ou foi Judeu?
Bate-me
o coração. Meu Deus, fui eu!
Fechando
com chave de ouro, eis o que escreveu o Bernardo Soares, no Livro do
Desassossego:
PRECE
Senhor,
que és o céu e a terra, e que és a vida e a morte! O Sol és tu a Lua és tu e o
vento és tu! Tu és os nossos corpos e as nossas almas e o nosso amor és tu
também. Onde nada mais está tu habitas e onde tudo está, - (o teu templo) -,
eis o teu corpo.
Dá-me alma para te servir e alma
para te amar. Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra, ouvidos para te
ouvir no vento e no mar, e mãos para trabalhar em teu nome.
Torna-me puro como a água e alto
como o Céu. Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas
mortas nas lagoas dos meus propósitos. Faze com que eu saiba amar os outros
como irmãos e servir-te como a um pai.
Minha vida seja digna da tua
presença, Meu corpo seja digno da terra, tua cama. Minha alma possa aparecer
diante de ti como um filho que volta ao lar.
Torna-me grande como o Sol, para
que eu te possa adorar em mim; torna-me puro como a Lua, para que eu te possa
rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver sempre em
mim e rezar-te e adorar-te.
Os poemas citados, mostram, com
muita clareza, o modo como o Fernando Pessoa encarava a questão de Deus. Mesmo
no primeiro dos poemas referido, o Álvaro de Campos demonstra que o Poeta
conhecia, pormenorizadamente, a Bíblia. E só quem acredite na Bíblia a lê.
FERNANDO
RANITO, 30 DE SETEMBRO DE 2013