quinta-feira, 8 de julho de 2010

Ainda "Caeiro, o Mestre?"

Volto, após um longo e involuntário silêncio, ao tema que estava a debater: Alberto Caeiro, o Mestre?

No seguimento do que escrevi, e porque foi nesse ponto, que me interrompi, retomo ao momento e as circunstâncias em que surgiu, ao Fernando Pessoa, a heteronomia. Digo que a heteronomia lhe surgiu, para deixar bem claro que, é meu entendimento, que ela se foi infiltrando, lenta e imperceptivelmente, no seu subconsciente, não a tendo ele concebido a partir do seu aprofundado racionalismo nem, – como muitos defendem –, resulte de um atavismo irreprimível. É preciso não esquecer que a educação escolar do Poeta, fora feita em Inglês, até aos seus 18 anos; Milton e Shakespeare eram os meus modelos. A sua vinda para Lisboa, para frequentar o Curso de Letras da Universidade, fê-lo reencontrar a sua língua materna, muito provavelmente estimulado pela “docência intelectual” que sobre ele exerceu o irmão do Padrasto, o General Henrique Rosa, com quem conviveu muito proximamente após o seu regresso de Durbun. Será até muito natural admitir que General Henrique Rosa, tenha recebido, de África, pedidos de apoio e acompanhamento familiar. A verdade é que, em 1908, já nos aparecem poemas em português que hoje nos mostram serem a abertura do ciclo do tal Supra-Camões, que ele viria a vaticinar em dois históricos artigos escritos na revista da Renascença Portuguesa, A Águia. Diria mesmo que, começa então, a sua busca interior, que tão alto o levou.

Em Fevereiro de 1909 escreveu um conjunto de seis poemas, que intitulou “Em busca da Beleza”, onde surge já, de modo inequívoco, todo o seu talento poético,

Soam vão, doloridos, epicuristas,

Os versos teus, que a minha dor despreza;

Já tive a alma sem descrença presa

Desse teu sonho que perturba a vista.

Da Perfeição segui em vã conquista,

Ma vi depressa, já sem alma acesa

Que a própria ideia em nós dessa Beleza

Um infinito de nós mesmo dista.

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Assim começa o primeiro desses poemas. E ele, a partir daí, tenta vencer o infinito que “de nós” dista, o conceito ou a ideia da Beleza. A princípio, usando um modo clássico de procurar as palavras que lhe abrissem o caminho. Mas aos poucos vai-se libertando desse modelo, que lhe tolhia o seu pensamento, na sua busca de mais alto e de mais além. E surge o poema que veio a influenciar decisivamente o seu amigo e correspondente, Mário de Sá Carneiro, que nele viu um novo modo de escrever poesia. Refiro-me a “Pauis”. Esse novo modo de escrever poesia, passaria a chamar-se “paulismo”, a que depois foi acrescentado o termo, igualmente inovador “interseccionismo”. Era um deixar jorrar, extasiadamente, as emoções da alma, que são os sentimento, sem qualquer limitação gramatical. Eis como começa esse tão importante poema:

Pauis de roçarem ânsias pela minh’alma em ouro…

Dobre longínquo de Outros Sinos… Empalidece o louro

Trigo na cinza poente… Como um frio carnal por minh’alma…

Tão sempre a mesma, a Hora… Baloiçar de cimos de palma…

Silencio que a folhas fitam em nós… Outono delgado

Dum canto de vaga ave… Azul esquecido em estagnado…

Oh que mudo grito de ânsia põe garras na Hora!

Que pasmo de mim anseia por outra coisa que o que chora!

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Este poema está datado de 29-3-1913. Quatro meses depois, 4-7-1913, aparece aquele, que, considero ser o poema maior desta fase - “Hora absurda” - .embora a maioria dos estudiosos do Pessoa escolhem um poema de Março, do ano seguinte, - “Chuva obliqua”. Por mim, julgo que o poema “Hora absurda” cria um novo espaço poético, onde as emoções e os sentimentos são chamados e comandados por palavras novas, criando imagens de infinita beleza.

O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas…

Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso…

E o teu sorriso, no teu silêncio, são as escadas e as andas

Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso…

Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte…

O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto…

Minha ideia de ti é um cadáver que o mar traz à praia…, e entanto

Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte…

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A nova aragem poética que começou com o “pauis” e se intensificou e aprofundou na “Hora Absurda e na “chuva Oblíqua”, tornou-se, a meu ver, numa tempestade cada vez mais violenta na procura que o poeta iniciara, de modo clássico e calmo, obrigando-o à procura de caminhos menos agitados, simplificando-se, se me é permitida esta expressão. E terá, então escrito os primeiros poemas, que, mais tarde, viriam a constituir o conjunto “O Guardador de Rebanhos”, atribuído a um poeta simples,”tendo os olhos cheios de Natureza”, o Alberto Caeiro, promovido em 1935, a Mestre… Ter-se-lhe-á, eventualmente, colocado a questão “E se a verdade da vida fôsse assim?” E deixou-se tentar pela simplicidade.

Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do mundo?

Sei lá o que penso do mundo!

Se eu adoecesse, pensaria nisso.

Que ideia tenho das coisas?

Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?

Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma?

E sobre a criação do mundo?

Não sei. Pensar nisso é fechar os olhos

E não pensar. É correr as cortinas

Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!

O único mistério é haver quem pense no mistério.

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Depois de ter andado por uma espiral infinita à procura do sentido da vida e das coisas, este “E se fosse tudo tão simples? E se afinal fôssemos nós que complicamos?”, foi, durante uns tempos, um refrigério, um momento de paz e de descanso. E escreveu:

Pensar em Deus é desobedecer a Deus,

Porque Deus quis que o não conhecêssemos,

Por isso se nos não mostrou…

Sejamos simples e calmos,

Como os regatos e as árvores,

E Deus amar-nos-á fazendo de nós

Nós como as árvores são árvores

E como os regatos são regatos,

E dar-nos-á verdor na sua primavera,

E um rio onde ir ter quando acabemos…

E não nos dará mais nada, porque dar-nos mais seria tirar-nos-nos.

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Quando em 13 de Janeiro de 1935, escreveu ao Casais Monteiro, a célebre carta dos Heterónimos, passou-lhe a idéia do tal “dia glorioso” em que teria escrito de um jacto os “trinta e tantos poemas do Guardador de Rebanhos”, quando, e perante as datas que apôs nalguns poemas tal como estão na Biblioteca Nacional, alguns foram escritos antes e outros depois, havendo mesmo poemas com datas posteriores àquela, que, na referida carta, indicou como tendo sido a da morte, por tuberculose, do Alberto Caeiro, – 1915…E o mesmo acontece com o outro Livro do Caeiro, a que o Fernando Pessoa, chamou “O Pastor Amoroso”, este quase todo escrito em 1929 e, sobretudo, 1930… Se o Poeta não tivesse morrido precoce e imprevistamente, em Novembro de 1935, estes desacertos de datas teriam sido ,naturalmente, corrigidos, quando acabasse a revisão em que se empenhara, para a sua publicação.

De qualquer modo, creio que se não deve dar qualquer relevância a factos desta natureza, fruto da prodigiosa imaginação do Poeta, perante a imensa dimensão da sua Obra. Dias gloriosos, foram todos aqueles em que escreveu a sua maravilhosa poesia, atribuída a qualquer dos seus heterónimos, ou por si mesmo subscrita. . E também todos entendemos o que tem de simbólica, a promoção do Alberto Caeiro a Mestre, do Pessoa, do Reis e do Campos, aceitando o tal, “E se fosse tudo tão simples?” E hoje todo o mundo sabe que só houve um Mestre e um Poeta: o Fernando Pessoa, o maior Poeta do Século XX.