quinta-feira, 31 de março de 2016

FAZ HOJE 85ANOS




Não tenho quinta nenhuma.
Se a quero ter p'ra sonhar,
Tenho que a extrair da bruma
Do meu mole meditar.

E então, desfazendo a névoa
Que há sempre dentro de nós,
Progressivamente elevo-a
Até uma quinta a sós.

Vejo os tanques, vejo as calhas
Por onde a água vai pequena,
Vejo os caminhos com falhas,
Vejo a eira erma e serena.

E, contente deste nada
Que em mim mesmo faço externo,
Gozo a frescura relvada
Da não-quinta em que me interno.

Vilegiatura impossível,
Dou-lhe nós para lembrar,
E esqueço-a ao primeiro nível
Do meu mole meditar.

FERNANDO PESSOA, 30 DE MARÇO DE 1931


quarta-feira, 30 de março de 2016

FAZ HOJE 83 ANOS




Assim, sem nada feito e o por fazer
Mal pensado, ou sonhado sem pensar,
Vejo meus dias nulos decorrer,
E o cansaço de nada me aumentar.

Perdura, sim, como uma mocidade
Que a si mesma sobrevive, a esperança,
Mas à mesma esperança o tédio invade,
E a mesma falsa mocidade cansa.

Ténue passar das horas sem proveito,
Leve correr dos dias sem acção,
Como a quem com saúde jaz no leito
Ou quem sempre se atrasa sem razão.

Vadio sem andar, meu ser inerte
Contempla-me, que esqueço de querer,
E a tarde exterior seu tédio verte
Sobre quem nada fez e nada quer.

Inútil vida, posta a um canto e ida
Sem que alguém nela fosse, nau sem mar,
Obra solenemente por ser lida,
Ah, deixem-me sonhar sem esperar!

FERNANDO PESSOA, 30 DE MARÇO DE 1933


terça-feira, 29 de março de 2016

FAZ HOJE 85 ANOS



Vaga, no azul amplo solta,
Vai uma nuvem errando.
O meu passado não volta.
Não é o que estou chorando.

O que choro é diferente.
Entra mais na alma da alma.
Mas como, no céu sem gente,
A nuvem flutua calma,

E isto lembra uma tristeza
E a lembrança é que entristece,
Dou à saudade a riqueza
De emoção que a hora tece.

Mas, em verdade, o que chora
Na minha amarga ansiedade
Mais alto que a nuvem mora,
Está para além da saudade.

Não sei o que é nem consinto
À alma que o saiba bem.
Visto da dor com que minto
Dor que a minha alma tem.


FERNANDO PESSOA, 29 DE MARÇO DE 1931


segunda-feira, 28 de março de 2016

FAZ HOJE 86 ANOS





AMUN-RA

Meu ser vive na noite e no outramente,
Vestígio e esteira de onde o barco foi...

Nada é, tudo se outra. A consciência
É o vácuo entre o que somos e Ele é.
E a Natureza é a sombra que se vê
Encher de luz o vácuo e a luz é ciência.
Enche o vácuo de temor
Enche de movimento a inexistência.

Mas onde a luz que é Ele e a intermitência?
Onde está o universo onde se lê
Com a voz da Razão verbo de fé...
Onde é que o Nada encontra a consistência?

Paro em mim mesmo, exausto de pensar-me,
No que sou, Tu, Ser que o ser enche e cobre,
E o silêncio é ouvir-te e renovar-me
Oiço e um horror me os olhos da alma vasa.
E a Sua agonia é um manto sobre
O não haver senão a Sua asa.
Dentro d'Ele seu ser de si extravasa.

Foi antes do Não-ser de onde Deus veio,
Na antiga Noite, antes de a noite ser,
Que no abismo de Ele teve ver
O Espírito que olha e está mo meio.

E à roda, fluido de anterior anseio,
Começo abstracto de poder haver
Em círculos concêntricos de ter
Concebeu-se o universo, a si alheio.

Mas o Fantasma guarda a porta ausente,
E inda haveria mais que eternos céus
Que passar, antes que ter de ser fosse ente.
Então abriu a porta e Ele era os seus.
Amanheceu-se em flor no inexistente.
Sem ser morte. A sua morte é Deus.

FERNANDO PESSOA, 28 DE MARÇO DE 1930

domingo, 27 de março de 2016

FAZ HOJE 82 ANOS


Com que revolta me reconheço
Sempre esquecido do que eu amei!
O sol luz claro, o céu azul
Dá aos sentidos a lucidez
O vento é brando, neste amplo sul,
E os mortos morrem segunda vez.

FERNANDO PESSOA, 27 DE MARÇO DE 1934


sábado, 26 de março de 2016

FAZ HOJE 82 ANOS



Quarto

AS ILHAS AFORTUNADAS

Que voz vem no som das ondas
Que não é a voz do mar?
É a voz de alguém que nos fala,
Mas que, se escutamos, cala,
Por ter havido escutar.

E só se, meio dormindo,
Sem saber de ouvir ouvimos,
Que ela nos diz a esperança
A que, como uma criança
Dormente, a dormir sorrimos.

São ilhas afortunadas,
São terras sem ter lugar,
Onde o Rei mora esperando.
Mas, se vamos despertando,
Cala a voz, e há só o mar.

FERNANDO PESSOA, 26 DE MARÇO DE 1934

(Da “Mensagem”)


sexta-feira, 25 de março de 2016

FAZ HOJE 88 ANOS



Há música. Tenho sono.
Tenho sono com sonhar.
'Stou num longínquo abandono
Sem me sentir nem pensar.

A música é pobre. Mas
Não será mais pobre a vida?
Não importa que eu durma. Faz
Sono sentir a descida...

Que inteligência há-de dar-se
Ao princípio da absorção?
Há música. Antes chorar-se
Sem que (...)

Aventura inexequível,
Congruência com não ser.
Meu coração no desnível,
Meu cansaço sem ceder.

Meu paraíso perdido!
Meu rebanho abandonado!
Vou no séquito abolido
Como um pajem exilado.

FERNANDO PESSOA, 25 DE MARÇO DE 1928


quinta-feira, 24 de março de 2016

FAZ HOJE 85 ANOS



Num dia silencioso
E num quarto interior
Como soa doloroso
Um pregão de vendedor!

Devendo ter a alegria
Da rua e do céu que tem,
A voz soa longe, fria
Da própria vida a que vem.

Talvez o mal seja meu,
Que a voz, onde soa e está,
Não sabe que eu sinto e que eu
Sinto sempre o que não há.

Sinto que é a vida, que, enorme
Ao coração se me exprime.
É a vida, mas a dizer-me
Que dela não me aproxime.

FERNANDO PESSOA, 24 DE MARÇO DE 1931


quarta-feira, 23 de março de 2016

FAZ HOJE 103 ANOS




PAUIS

Pauis que roçarem ânsias pela minha alma em ouro...
Dobre longínquo d'Outros Sinos... Empalidece o louro
Trigo na cinza do poente... Corre um frio carnal por minha por minha alma...
Tão sempre a mesma, a Hora!... Balouçar de cimos de palma!...
Silêncio da parte inferior das folhas, outono delgado
D'um canto de vaga ave... Azul esquecidos em estagnado...
Ó que mudo grito de ânsia põe garras na Hora!...
Que pasmo de mim anseia por outra coisa que o que chora?...
Estendo as mãos para Além, mas no estender delas já vejo
Que não é aquilo que quero aquilo que desejo...
Címbalos de imperfeição... Ó tão antiguidade
A hora expulsa de si-Tempo!... Onda de recuo que invade
O meu abandonar-me a mim-próprio até desfalecer
E recordar tanto o eu presente que me sinto esquecer...
Fluido de auréola transparente de Foi, oco de ter-se...
O mistério sabe-me a eu ser outro... Luar sobre o não conter-se...
A sentinela é hirta, a lança que finca no chão
É mais alta que ela... P'ra que é tudo isto... Dia chão...
Trepadeiras de despropósito lambendo de Hora os aléns!
Horizontes fechando os olhos ao espaço em que são elos de erro!
Fanfarras de ópios de silêncios futuros!... Longes trens!...
Portões vistos longe, através das árvores, tão de ferro!...



FERNANDO PESSOA, 23 DE MARÇO DE 1913


terça-feira, 22 de março de 2016

FAZ HOJE 102 ANOS



Mãos brancas (meras mãos sem corpo e sem braços)
Acariciando um negro veludo...
Os olhos do guerreiro vistos por cima do escudo

(Cartas de luto sobre regaços)
E nunca desfraldado o estandarte
De modo a ver-se que cores e imagens tem...
Mãos sem lágrimas, mãos que nunca seriam de mãe...
Ah, não ser eu toda a gente e toda a parte!'

Dói púrpuras o silêncio, e que lírios a hora!
E nos tabernáculos das ocasiões um rito de timbres cobra
Os vitrais das passadas desilusões...

Cessou no Oposto o ruído de vagas batalhas
Ficou todo o espaço sendo, com túmulos (brancos) a Hora,
Um suspirar de guizos, com fimbrias de falhas...

Abrem-se de par em par impossíveis portões
E desabrocha a ira nos olhos de Artur
Dos vultos, na sombra, de leões...

Mas os dias acontecem oráculos neutros
E não há rituais, Princesa, senão de imperfeições...


FERNANDO PESSOA, 22 DE MARÇO DE 1914


segunda-feira, 21 de março de 2016

FAZ HOJE 82 ANOS



Vibra, clarim, cuja voz diz
Que outrora ergueste o grito real
Por D. João, Mestre de Avis,
E Portugal!

Vibra, grita aquele hausto fundo
Com que impeliste, como um remo,
Em El-Rei D. João Segundo
O Império extremo!

Vibra, sem lei ou com a lei,
Como aclamaste outrora em vão
O morto que hoje é vivo - El-Rei
D. Sebastião!

Vibra chamando, e aqui convoca
O inteiro exército fadado
Cuja extensão os pólos toca
Do mundo dado!

Aquele exército que é feito
De quanto em Portugal é o mundo
E enche este mundo vasto e estreito
De ser profundo!

Para a obra que há que prometer
Ao nosso esforço alado em si,
Convoca todos sem saber 
(Ë a Hora!) aqui!

Os que, soldados da alta glória,
Deram batalhas com um nome,
E de cuja alma a voz da história
Tem sede e fome.

E os que, pequenos e mesquinhos,
No ver e crer da externa sorte,
Calçaram imperiais caminhos
Com vida e morte.

Sim, estes, os plebeus do Império,
Heróis sem ter para que o ser,
Chama-os aqui, ó som etéreo
Que vibra a arder!

E os que sonharam, enlevados
No Outro Império que sorri
Além do mundo e os céus fechados,
Aqui! Aqui!

E, se o futuro é já presente
Na visão de quem sabe ver,
Convoca aqui eternamente
Os que hão-de ser!

Todos, todos! A hora passa,
O génio colhe-a quando vai.
Vibra! Forma outra e a mesma raça
Da que se esvai!

A todos, todos, feitos num
Que é Portugal, sem lei nem fim,
Convoca, e, erguendo-os um a um,
Vibra, clarim!

E outros, e outros, gente vária,
Oculta neste mundo misto.
Seu peito atrai, rubra e templária,
A Cruz de Cristo.

Glosam, secretos, altos motes,
Dados no idioma do Mistério -
Soldados não, mas sacerdotes,
Do Quinto Império.

Aqui! Aqui! Todos que são
O Portugal que é tudo em si,
Venham do abismo ou da ilusão,
Todos aqui!

Armada intérmina surgindo,
Sobre ondas de uma vida estranha,
Do que por haver ou do que é findo -
É o mesmo: venha!

Vós não soubestes o que havia
No fundo incógnito da raça,
Nem como a Mão, que tudo guia,
Seus planos traça.

Mas um instinto involuntário,
Um ímpeto de Portugal,
Encheu vosso destino vário
De um dom fatal.

De um rasgo de ir além de tudo,
De passar para além de Deus,
E, abandonando o gládio e o escudo,
Galgar os céus.

Titãs de Cristo! Cavaleiros
De uma cruzada além dos astros,
De que esses astros, aos milheiros,
São só os rastros.

Vjbra, estandarte feito som,
No ar do mundo que há-se ser.
Nada pequeno é justo e bom.
Vibra a vencer!

Transcende a Grécia e a sua história
Que em nosso sangue continua!
Deixa atrás Roma e a sua glória
E a Igreja sua!

Depois transcende esse furor
E a todos chama ao mundo visto,
Hereges por um Deus maior
E um novo Cristo!

Vinde aqui todos os que sois,
Sabendo-o bem, sabendo-o mal,
Poetas, ou santos, ou heróis
De Portugal.

Não foi p'ra servos que nascemos
Da Grécia ou Roma ou de ninguém.
Tudo negámos e esquecemos:
Fomos para além.

Vibra, clarim, mais alto! Vibra!
Grita a nossa ânsia já ciente,
Que o seu inteiro voo libra
De poente a oriente!

Vibra, clarim! A todos chama!
Vibra! E tu mesmo, voz a arder,
O Portugal de Deus proclama
Com o fazer!

O Portugal feito Universo,
Que reúne, sob amplos céus,
O corpo anónimo e disperso
De Osíris, Deus.

O Portugal que se levanta
Do fundo surdo do Destino,
E, como a Grécia, obscuro canta
Baco divino.

Aquele inteiro Portugal,
Que, universal perante a luz,
Reza, ante a Cruz universal,
Ao Deus Jesus.


FERNANDO PESSOA, 21 DE MARÇO DE 1934

domingo, 20 de março de 2016

FAZ ESTE MES 102 ANOS




OPIÁRIO

Ao Senhor Mário de Sá-Carneiro

É antes do ópio que a minh'alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.

Esta vida de bordo há-de matar-me.
São dias só de febre na cabeça
E, por mais que procure até que adoeça,
Já não encontro a mola pra adaptar-me.

Em paradoxo e incompetência astral
Eu vivo a vincos de ouro a minha vida,
Onda onde o pundonor é uma descida
E os próprios gozos gânglios do meu mal.

É por um mecanismo de desastres,
Uma engrenagem com volantes falsos,
Que passo entre visões de cadafalsos
Num jardim onde há flores no ar, sem hastes.

Vou cambaleando através do lavor
Duma vida-interior de renda e laca.
Tenho a impressão de ter em casa a faca
Com que foi degolado o Precursor.

Ando expiando um crime numa mala,
Que um avô meu cometeu por requinte.
Tenho os nervos na forca, vinte a vinte,
E caí no ópio como numa vala.

Ao toque adormecido da morfina
Perco-me em transparências latejantes
E numa noite cheia de brilhantes
Ergue-se a lua como a minha Sina.

Eu, que fui sempre um mau estudante, agora
Não faço mais que ver o navio ir
Pelo canal de Suez a conduzir
A minha vida, cânfora na aurora.

Perdi os dias que já aproveitara.
Trabalhei para ter só o cansaço
Que é hoje em mim uma espécie de braço
Que ao meu pescoço me sufoca e ampara.

E fui criança como toda a gente.
Nasci numa província portuguesa
E tenho conhecido gente inglesa
Que diz que eu sei inglês perfeitamente.

Gostava de ter poemas e novelas
Publicados por Plon e no Mercure,
Mas é impossível que esta vida dure,
Se nesta viagem nem houve procelas!

A vida a bordo é uma coisa triste,
Embora a gente se divirta às vezes.
Falo com alemães, suecos e ingleses
E a minha mágoa de viver persiste.

Eu acho que não vale a pena ter
Ido ao Oriente e visto a Índia e a China.
A terra é semelhante e pequenina
E há só uma maneira de viver.

Por isso eu tomo ópio. É um remédio.
Sou um convalescente do Momento.
Moro no rés-do-chão do pensamento
E ver passar a Vida faz-me tédio.

Fumo. Canso. Ah uma terra aonde, enfim,
Muito a leste não fosse o oeste já!
Pra que fui visitar a Índia que há
Se não há Índia senão a alma em mim?

Sou desgraçado por meu morgadio.
Os ciganos roubaram minha Sorte.
Talvez nem mesmo encontre ao pé da morte
Um lugar que me abrigue do meu frio.

Eu fingi que estudei engenharia.
Vivi na Escócia. Visitei a Irlanda.
Meu coração é uma avozinha que anda
Pedindo esmola às portas da Alegria.

Não chegues a Port-Said, navio de ferro!
Volta à direita, nem eu sei para onde.
Passo os dias no smoking-room com o conde -
Um escroc francês, conde de fim de enterro.

Volto à Europa descontente, e em sortes
De vir a ser um poeta sonambólico.
Eu sou monárquico mas não católico
E gostava de ser as coisas fortes.

Gostava de ter crenças e dinheiro,
Ser vária gente insípida que vi.
Hoje, afinal, não sou senão, aqui,
Num navio qualquer um passageiro.

Não tenho personalidade alguma.
É mais notado que eu esse criado
De bordo que tem um belo modo alçado
De laird escocês há dias em jejum.

Não posso estar em parte alguma. A minha
Pátria é onde não estou. Sou doente e fraco.
O comissário de bordo é velhaco.
Viu-me co'a sueca... e o resto ele adivinha.

Um dia faço escândalo cá a bordo,
Só para dar que falar de mim aos mais.
Não posso com a vida, e acho fatais
As iras com que às vezes me debordo.

Levo o dia a fumar, a beber coisas,
Drogas americanas que entontecem,
E eu já tão bêbado sem nada! Dessem
Melhor cérebro aos meus nervos como rosas.

Escrevo estas linhas. Parece impossível
Que mesmo ao ter talento eu mal o sinta!
O facto é que esta vida é uma quinta
Onde se aborrece uma alma sensível.

Os ingleses são feitos pra existir.
Não há gente como esta pra estar feita
Com a Tranquilidade. A gente deita
Um vintém e sai um deles a sorrir.

Pertenço a um género de portugueses
Que depois de estar a Índia descoberta
Ficaram sem trabalho. A morte é certa.
Tenho pensado nisto muitas vezes.

Leve o diabo a vida e a gente tê-la!
Nem leio o livro à minha cabeceira.
Enoja-me o Oriente. É uma esteira
Que a gente enrola e deixa de ser bela.

Caio no ópio por força. Lá querer
Que eu leve a limpo uma vida destas
Não se pode exigir. Almas honestas
Com horas pra dormir e pra comer,

Que um raio as parta! E isto afinal é inveja.
Porque estes nervos são a minha morte.
Não haver um navio que me transporte
Para onde eu nada queira que o não veja!

Ora! Eu cansava-me do mesmo modo.
Queria outro ópio mais forte pra ir de ali
Para sonhos que dessem cabo de mim
E pregassem comigo nalgum lodo.

Febre! Se isto que tenho não é febre,
Não sei como é que se tem febre e sente.
O facto essencial é que estou doente.
Está corrida, amigos, esta lebre.

Veio a noite. Tocou já a primeira
Corneta, pra vestir para o jantar.
Vida social por cima! Isso! E marchar
Até que a gente saia pla coleira!

Porque isto acaba mal e há-de haver
(Olá!) sangue e um revólver lá prò fim
Deste desassossego que há em mim
E não há forma de se resolver.

E quem me olhar, há-de-me achar banal,
A mim e à minha vida... Ora! um rapaz...
O meu próprio monóculo me faz
Pertencer a um tipo universal.

Ah quanta alma haverá, que ande metida
Assim como eu na Linha, e como eu mística!
Quantos sob a casaca característica
Não terão como eu o horror à vida?

Se ao menos eu por fora fosse tão
Interessante como sou por dentro!
Vou no Maelstrom, cada vez mais prò centro.
Não fazer nada é a minha perdição.

Um inútil. Mas é tão justo sê-lo!
Pudesse a gente desprezar os outros
E, ainda que co'os cotovelos rotos,
Ser herói, doido, amaldiçoado ou belo!

Tenho vontade de levar as mãos
À boca e morder nelas fundo e a mal.
Era uma ocupação original
E distraía os outros, os tais sãos.

O absurdo, como uma flor da tal Índia
Que não vim encontrar na Índia, nasce
No meu cérebro farto de cansar-se.
A minha vida mude-a Deus ou finde-a...

Deixe-me estar aqui, nesta cadeira,
Até virem meter-me no caixão.
Nasci pra mandarim de condição,
Mas falta-me o sossego, o chá e a esteira.

Ah que bom que era ir daqui de caída
Prà cova por um alçapão de estouro!
A vida sabe-me a tabaco louro.
Nunca fiz mais do que fumar a vida.

E afinal o que quero é fé, é calma,
E não ter estas sensações confusas.
Deus que acabe com isto! Abra as eclusas -
E basta de comédias na minh'alma!

No Canal de Suez, a bordo.

ÁLVARO DE CAMPOS, MARÇO DE 1914


sábado, 19 de março de 2016

FAZ HOJE 105 ANOS




Tange o sino, tange
Tange doloroso.
Cai como quer um alfange
No meu sonhar de gozo...
E o sino tange, tange
Lento e ao longe moroso.

E tange e plange ao longe
Aérea melodia...
Cada som é um monge
Na sua alva fria.
Tange o sino de bronze
No escurecer que esfria.

E em mim também é escura
A tarde do meu ser
E plange em mim, na lonjura
Do meu vago esquecer
Um sino ao longe, a agrura
De me saber ser.

FERNANDO PESSOA, 19 DE MARÇO DE 1911