quinta-feira, 27 de agosto de 2020

FAZ HOJE 90 ANOS

 



Minha mulher, a solidão,

Consegue que eu não seja triste.

Ah, que bom é ao coração

Ter este bem que não existe!

 

Recolho a não ouvir ninguém,

Não sofro o insulto de um carinho

E falo alto sem que haja alguém:

Nascem-me os versos do caminho.

 

Senhor, se há bem que o céu conceda

Submisso à opressão do Fado,

Dá-me eu ser só - veste de seda -,

E fala só - leque animado.

 

FERNANDO PESSOA, 27 DE AGOSTO DE 1930

 

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

FAZ HOJE 90 ANOS

 


No vale umbroso, como

Se houvesse de esconder

Do mundo o meu assomo

De não lhe pertencer,

 

Abrigo-me à folhagem

Que trémula emusqueja

O chão da minha viagem

Para que nada seja

 

E ali, parte da paz,

Sem sorte nem dever,

Onde nada me traz

O que não quero ter.

 

Ali, sentado à calma,

Ali, talvez, talvez

Encontrarei minha alma

Tal como Deus fez.

 

 

FERNANDO PESSOA, 24 DE AGOSTO DE 1930

 

domingo, 23 de agosto de 2020

FAZ HOJE 86 ANOS

 


 

Ah, quero as relvas e as crianças!

Quero o coreto com a banda!

Quero os brinquedos e as danças -

A corda com que a alma anda.

 

Quero ver todas brincar

Num jardim onde se passa,

Para ver se posso achar

Onde está minha desgraça.

 

Ah, mas minha desgraça está

Em eu poder querer isto -

Poder desejar o que há.

 

 

FERNANDO PESSOA, 23 DE AGOSTO DE 1934

 

domingo, 16 de agosto de 2020

FAZ HOJE 86 ANOS

 


 

Quem foi que, em minha ausência, regou flores

E me foi bom limpando a casa suja?

Quem arrumou meus livros - os melhores

Postos no centro - em minha estante antiga?

 

Quem pôs em seu lugar essas cadeiras

Que desde muito o procuravam quedas,

E com boas e anónimas maneiras,

Acomodou cortinas como sedas?

 

Foi qualquer fada, que me amou outrora

Antes que o tempo e o espaço fossem Deus?

Não sei, mas tenho a minha casa agora

Limpa e fechada contra a terra e os céus.

 

 

FERNANDO PESSOA, 16 DE AGOSTO DE 1934

 

sábado, 15 de agosto de 2020

FAZ HOJE 86 ANOS

 


 

A pompa inútil dos teus gestos quedos,

Como que à espera do ritual a dar,

Não traz ainda os segredos

Que ninguém tem para entregar.

Mas é como um prelúdio entre rochedos

Ao que é o som do mar.

 

Deram-me rosas para que eu viesse.

Deram-me lírios para que sonhasse.

A rosa murcha e esquece,

E o lírio cai antes que amarelasse.

Mas isso tudo é a teia que nos tece

Uma aranha que nos amasse.

 

Ah, em vez de rosas, lírios, ou que seja

Que me dêem o céu e o mar sem fim

E o que da aragem vaga seja

Tudo o que faz dormir assim.

E o que de tudo eu sonhe ou até veja

Que seja sempre só em mim.

 

FERNANDO PESSOA, 15 DE AGOSTO DE 1934

 

terça-feira, 11 de agosto de 2020

FAZ HOJE 90 ANOS



Não! Só quero a liberdade!
Amor, glória, dinheiro são prisões.
Bonitas salas? Bons estofos? Tapetes moles?
Ah, mas deixem-me sair para ir ter comigo.
Quero respirar o ar sozinho,
Não tenho pulsações em conjunto,
Não sinto em sociedade por quotas,
Não sou senão eu, não nasci senão quem sou, estou cheio de mim.
Onde quero dormir? No quintal...
Nada de paredes - só o grande entendimento -
Eu e o universo,
E que sossego, que paz não ver antes de dormir o espectro do guarda-fato
Mas o grande esplendor, negro e fresco de todos os astros juntos,
O grande abismo infinito para cima
A pôr brisas e bondades do alto na caveira tapada de carne que é a minha cara,
Onde só os olhos - outro céu - revelam o grande ser subjectivo.

Não quero! Dêem-me a liberdade!
Quero ser igual a mim mesmo.
Não me capem com ideais!
Não me vistam as camisas-de-forças das maneiras!
Não me façam elogiável ou inteligível!
Não me matem em vida!

Quero saber atirar com essa bola alta à lua
E ouvi-la cair no quintal do lado!
Quero ir deitar-me na relva, pensando "amanhã vou buscá-la..."
Amanhã vou buscá-la ao quintal ao lado...
Amanhã vou buscá-la ao quintal ao lado...
Amanhã vou buscá-la ao quintal
Buscá-la ao quintal
Ao quintal
Ao lado...

ÁLVARO DE CAMPOS, 11 DE AGOSTO DE 1930

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

FAZ HOJE 88 ANOS




A aranha do meu destino
Faz teias de eu não pensar.
Não soube o que era em menino,
Sou adulto sem o achar.
É que a teia, de espalhada
Apanhou-me o querer ir...
Sou uma vida baloiçada
Na consciência de existir
A aranha da minha sorte
Faz teia de muro a muro...
Sou presa do meu suporte.

FERNANDO PESSOA, 10 DE AGOSTO DE 1932