quinta-feira, 31 de maio de 2012

FAZ HOJE 81 ANOS




Os sons da filarmónica vindos de longe
O que é que são,
Além de sons da filarmónica vindos de longe,
Ao coração?


São saudades, não só minhas, porque eu
Sou toda a gente - 
Saudades de todos, de toda a sua gente que morreu
E está ausente...


Nesta hora escuto-os, são convivas do som
Que vem sem razão...
Trazem a tristeza de um passado já bom
Ao coração...


Gente, quartos, jardins, janelas, tudo...
Tudo isso vem
Em saudade estupidamente musical do fundo
Da alma e Belém. 


FERNANDO PESSOA, 31 DE MAIO DE 1931

quarta-feira, 30 de maio de 2012

FAZ ESTE MÊS 79 ANOS



Penso em ti no silêncio da noite, quando tudo é nada,
E os ruídos que há no silêncio fazem o próprio silêncio,
Então, sozinho de mim, passageiro parado
De uma viagem em Deus, inutilmente penso em ti.


Todo o passado, em que foste um momento eterno,
É como este silêncio de tudo.
Todo o perdido, em que foste o que mais perdi,
É como estes ruídos,
Todo o inútil, em que foste o que não houvera de ser
É como o nada por ser este silêncio nocturno.


Tenho visto morrer, ou ouvido que morreram,
Quantos amei ou conheci,
Tenho visto não saber mais nada deles de tantos que foram
Comigo, e pouco importa se foi um homem ou uma conversa,
Ou um parvo omitido do mundo,
E o mundo hoje para mim é um cemitério de noite
Branco e negro de campas e árvores e de luar alheio
E é neste sossego absurdo de mim e de tudo que penso em ti.


ÁLVARO DE CAMPOS, MAIO DE 1933

terça-feira, 29 de maio de 2012

FAZ HOJE 78 ANOS




O céu, azul de luz quieta...
As ondas brandas a quebrar
Na praia lúcida e completa -
Pontas de dedos a brincar...


No piano anónimo da praia
Tocam nenhuma melodia,
De cujo ritmo por fim raia
Todo o sentido deste dia.


Que bom se isto satisfizesse!
Que certo, se eu pudesse crer
Que esse mar e essas ondas e esse
Céu têm vida e têm ser.


FERNANDO PESSOA, 29 DE MAIO DE 1934

segunda-feira, 28 de maio de 2012

LIVRO DO DESASSOSSEGO


     
  Reconheço, não sei se com tristeza, a secura humana do meu coração. Vale mais para mim um adjectivo que um pranto real da alma. O meu mestre Vieira (…)
        Mas às vezes sou diferente, e tenho lágrimas, lágrimas das quentes dos que não têm nem tiveram mãe; e os meus olhos que ardem dessas lágrimas mortas, ardem dentro do meu coração.

        Não me lembro da minha mãe. Ela morreu tinha eu um ano. Tudo o que há de disperso e duro na minha sensibilidade vem da ausência desse calor e da saudade inútil dos beijos de que me não lembro. Sou postiço. Acordei sempre contra seio s outros, acalentado por desvio.

        Ah, é a saudade do outro que eu poderia ter sido que me dispersa e me sobressalta! Quem outro seria eu se me tivessem dado carinho do que vem desde o ventre até aos beijos na cara pequena?

        Talvez que a saudade de não ser filho tenha grande parte na minha indiferença sentimental. Quem, em criança, me apertou contra a cara não me podia apertar contra o coração. Essa estava longe, num jazigo – essa que me pertenceria se o Destino houvesse querido que me pertencesse.

        Disseram-me, mais tarde, que minha mão era bonita, e dizem que, quando mo disseram, eu não disse nada. Era já apto de corpo e alma, desentendido de emoções, e o falarem  ainda não era uma notícia de outras páginas difíceis de imaginar.

        Meu pai, que vivia longe, matou-se quando eu tinha três anos e nunca o conheci. Não sei ainda por que é que vivia longe. Nunca me importei de o saber. Lembro-me da notícia da sua morte como de uma grande seriedade às primeiras refeições depois de se saber. Olhavam, lembro-me, de vez em quando para mim. E eu olhava de troco, entendendo estupidamente. Depois comia com mais regra, pois talvez, sem eu ver, continuassem a olhar-me

        Sou todas essas coisas, embora o não queira, no fundo confuso da minha sensibilidade fatal.

BERNARDO SOARES (sem data)
(Do Livro do Desassossego – texto 30)
        

FAZ HOJE 82 ANOS



PARAGEM ZONA


Tragam-me esquecimento em travessas!
Quero comer o abandono da vida!
Quero perder o hábito de gritar para dentro.
Arre, já basta! Não sei o quê, mas já basta...
Então viver amanhã, hein?... E o que se faz hoje?
Viver amanhã por ter adiado hoje?
Comprei por acaso um bilhete para esse espectáculo?
Que gargalhadas daria quem pudesse rir!
E agora aparece o eléctrico - o de que eu estou à espera -
Antes fosse outro... Ter de subir já!
Ninguém me obriga, mas deixá-lo passar, porquê?
Só deixando passar todos, e a mim mesmo, e à vida...
Que náusea no estômago real que é a alma consciente!
Que sono bom o ser outra pessoa  qualquer...
Já compreendo por que é que as crianças querem ser guarda-freios...
Não, não compreendo nada...
Tarde de azul e ouro, alegria das gentes, olhos claros da vida...


ÁLVARO DE CAMPOS, 28 DE MAIO DE 1930 

domingo, 27 de maio de 2012

FAZ HOJE 103 ANOS




Poeira em ouro pairando
Sobre a brancura da estrada
És poeira e mais nada.


Poeira grisalha em rajadas revoando
Sobre a monótona estrada
És poeira, e mais nada.


Poeira negra nevoando
A parda e indefinida estrada
És poeira, e mais nada.


Ténue poeira levantada
Da vida da estrada
Poeira pairando, revoando, nevoando
Sobre a branca, a monótona ou negra estrada
Poeira de sombras vivendo
Ai de nós - és poeira e mais nada.


Por mais longe que a poeira 
Possa ir
Cai sempre.


A poeira é sempre da estrada.


FERNANDO PESSOA, 27 DE MAIO DE 1909







sábado, 26 de maio de 2012

FAZ HOJE 95 ANOS




Sofro, Lídia, do medo do destino.
A leve pedra que um momento ergue
As lisas rodas do meu carro, aterra
Meu coração.
Tudo quanto me ameace de mudar-me
Para melhor que seja, odeio e fujo.
Deixem-me os deuses  minha vida sempre
Sem renovar
Meus dias, mas que um passe e outro passe
Ficando eu sempre quase o mesmo, indo
Para a velhice como um dia entra
No anoitecer.


RICARDO REIS, 26 DE MAIO DE 1917

sexta-feira, 25 de maio de 2012

FAZ HOJE 78 ANOS




O a quem tudo é negado
Tem o mundo por fado,
O a quem ninguém ama
Tem  vida por chama
Esse a quem tudo falta,
Por baixo, a alma é alta.


São muitos os caminhos 
E alheios os vizinhos!
São largas as estradas
E as distâncias erradas,
Mas sempre sobra à alma
A fé que a faça calma.


Assim, sem espada ou lança,
Vou, como uma criança!
Pela estrada cantando
Porque vou confiando.
Vou sem medo e sem frio
Não sei em que confio.


FERNANDO PESSOA, 25  DE MAIO DE 1934

quinta-feira, 24 de maio de 2012

FAZ HOJE 97 ANOS




Ando com a minha alma ao colo,
Como se fosse uma criança,
Uma tristeza, um desconsolo,
Um amor ao que não se alcança...


Em que longínqua ilha deserta
Poderei ser o rei que fui?
Ao pé de que rio que flui
Ao pé duma janela aberta?


Essas horas ao pé da água
Seriam tão consoladoras
Das tristes, lentas, tardas horas
Que florescem na minha mágoa...


Vozes de crianças nos parques...
Arcos velozes nos jardins...
Não quero, ó alma, que tu arques
Com  a dor nítida dos Fins...


Quero antes que, pendente duma
Janela ao pé do rio lento,
Deixes cair teu pensamento
No rio lento sem espuma...


E assim o percas, assim vá
Por esse rio, além da vista,
À deslizada e a alvar conquista
Das margens que aqui não há.


Teus brincos velhos, tua avó
Usava-os e era tão feliz...
Como o meu coração está só...
Não o acompanha o que tua voz diz.


Meus olhos vão na água vista
Sob essa janela sonhada...
Meus olhos, esse ver que dista
De mim como eu daquela estrada


Perdida que podia, ó alma,
Conduzir-me ao teu gesto lento,
E casar-me em teu pensamento
Com a longínqua e última calma.


Mares distantes, ilhas pondo
Flores e florestas no mar...
Ó grande solidão lunar
Entre as cousas que vou supondo!...


Maturadas as confidências
Que fiz um dia ao teu requinte,
Guardo minha alma por acinte
E a espada sangra entre as consciências...


FERNANDO PESSOA 24 DE MAIO DE 1915

quarta-feira, 23 de maio de 2012

FAZ HOJE 96 ANOS



Não sei, ama, onde era;
Nunca o saberei...
Sei que era primavera
E o jardim do rei...
(Filha, quem o soubera!...)


Que azul tão azul tinha
Ali o azul do céu!
Se eu não era a rainha,
Porque era todo meu?
(Filha, quem o adivinha?)


E o jardim tinha flores
De que não me sei lembrar...
Flores de tantas cores...
Penso e fico a chorar...
(Filha, os sonhos são dores...)


Qualquer dia viria
Qualquer cousa a fazer
De aquela alegria
Mais alegria nascer
(Filha, o resto é morrer...)


Conta-me contos, ama...
Todos os contos são
Esse dia, e jardim e a dama
Que eu fui nessa solidão...
(Filha, (...) )


FERNANDO PESSOA, 23 DE MAIO DE 1916





terça-feira, 22 de maio de 2012

FAZ HOJE 99 ANOS




Morde-me com o querer-me que tens nos olhos
Despe-te em sonho ante o sonhares-me vendo-te,
Dá-te vária,dá sonhos de ti-própria aos molhos
Ao teu pensar-me querendo-te...


Desfolha sonhos teus de dando-te váriamente,
Ó perversa, sobre o êxtase da atenção
Que tu em sonhos dás-me... E o teu sonho de mim é quente
No teu olhar absorto ou em abstracção...


Possui-me-te, seja eu em ti meu espasmo e um rocio
De voluptuosos eus na tua coroa de rainha...
Meu amor será o sair de mim do teu ócio
E nunca serei teu,ó apenas-minha?


FERNANDO PESSOA, 22 DE MAIO DE 1913

segunda-feira, 21 de maio de 2012

FAZ HOJE 83 ANOS




Sim. sim, eu conheci-o.
Realmente era negro, luzidio,
Madrugador, jovial.
Sim, e de manhã cedo
Deveras se encontrava entre o arvoredo
Mas sem risadas (de ave fazem medo),
Nem ( que quer isso dizer?) de cristal.
Nesta altura, acabado o romantismo,
Um melro só a um melro é que é igual.


Quanto à história, nem cismo.
Acabou mal. 
Com Natureza contra Bíblia, como,
Em épocas de um outro assomo,
Seria Bíblia contra a Natureza.
Com igual misticismo.
Veio o Junqueiro, filho da Certeza
E o melro morreu realmente
(Mas morreu de o fazerem gente)
Caindo do ar real e insciente
Num gesto de asa que despreza.


E o gesto de asa diz, - pois tudo fala
No romantismo, ainda quando cala:


"Sou um melro e não um sócio vil
Da Associação do Registo Civil.
Sou um melro totalmente, e existo
Alheio a Cristo ou a não-Cristo,
Sem dar lição alguma sobre nada.
Mera alimária alada,
Inconsciente, como o céu de estar
Onde está, de mover-me e de cantar.
E se morri, arre!, morri.
Com isso provo que vivi.
Morri: pois deixem-me morrer
Sem me quererem compreender.


"E quanto aos versos subversivos
De Igrejas e Escrituras,
Deixem-se disso: são motivos
De audácia que já nem são bravuras.
Vejam claro,
Escrevam raro,
Tenham verdade ao menos no sentir,
E então por certo me ouvirão a rir,
Madrugador, jovial,
Logo de manhã cedo
Cantando entre a verdade do arvoredo
E não entre a mentira universal.


FERNANDO PESSOA, 21 DE MAIO DE 1929

domingo, 20 de maio de 2012

FAZ HOJE 80 ANOS




Chuva? Gotas como bagos,
Dispersas, dando no chão,
Sem aqueles bons afagos
Que a chuva faz sem estragos,
Lágrimas sem coração...


Chuva? Não. Tormenta falha.
Trovoada que o não foi.
É como quando a alma ralha
Com a sorte que lhe calha,
E nem a sorte lhe dói.


Chuva? O meu desassossego...
A intranquilidade inerte
Que me torna quem me nego...
Chuva? Entorpeço e renego.
Que mágoa em mim me converte?


FERNANDO PESSOA, 20 DE MAIO DE 1932

sábado, 19 de maio de 2012

FAZ HOJE 79 ANOS




Passa no sopro de aragem
Que um momento a levantou,
Um vago anseio de viagem,
Que o coração me toldou.


Será que em seu movimento
A brisa lembra a partida,
Ou que a largueza do vento
Lembra o ar livre da ida ?


Não sei, mas subitamente
Sinto a tristeza de estar
O saber que há rente
Entre sonhar e sonhar.


FERNANDO PESSOA, 19 DE MAIO DE 1932

sexta-feira, 18 de maio de 2012

FAZ HOJE 78 ANOS



Voam gaivotas rente ao chão.
Dizem que é chuva a ir chegar.
Mas não, neste momento não:
São só gaivotas rente ao chão
Só a voar.


Assim também se há alegria
Dizem que diz que a dor nos vem.
Talvez. Que importa? Se este dia
Tem aqui a sua alegria,
Que é que a dor tem?


Nada: só o rastro do futuro.
Quando vier, ficarei triste.
Por ora é o dia bom e puro.
Hoje o futuro não existe.
Há um muro.


Goza o que tens, ébrio de seres!
Deixa o futuro onde ele está.
Poemas, vinho, ideais, mulheres -
Seja o que for, se é o que há,
Há para o teres.


Mais tarde... Mais tarde sê
O que mais tarde te for dando.
Por ora aceita, ignora e crê.
Sê rente à terra, mas voando
Como a gaivota é.


FERNANDO PESSOA, 18 DE MAIO DE 1934

quinta-feira, 17 de maio de 2012

FAZ HOJE 80 ANOS




Foi entre as ruínas encontrada
Uma boneca despedaçada.
Uma boneca de criança.
Tinha o cabelo crespo, sem trança,
Do saque, ou do bombardeamento,
Ficou. brinquedo do momento.


Que é da criança de quem era?
Morta, expulsa, quem o soubera
De que servira que o soubesse?
Foi esse o fado? O fado foi esse.
Sem querer penso que amou
Esta boneca quem a usou.


Hoje, se é viva, terá pena
Desta boneca pequena.
Para que serve haver império
(...)


FERNANDO PESSOA, 17 DE MAIO DE 1932

quarta-feira, 16 de maio de 2012

FAZ HOJE 98 ANOS




BRISA


Que rios perdidos
Em outros países
Reflectem a sombra
De casas felizes


A cuja janela
Assoma a ondear
O som de uma voz
Alegre a cantar...


Não é aqui perto:
É longe daqui...
Não  há p'ra lá barcos
E a vida é assim.




FERNANDO PESSOA, 16 DE MAIO DE 1914

terça-feira, 15 de maio de 2012

FAZ HOJE 83 ANOS


QUASE


Arrumar a vida, pôr prateleiras na vontade e na acção...
Quero fazer isso agora, como sempre quis, com o mesmo resultado;
Mas que bom ter o propósito claro, firme só na clareza, de  fazer qualquer coisa!

Vou fazer as malas para o Definitivo,
Organizar Álvaro de Campos,
E amanhã ficar na mesma coisa que antes de ontem - um antes de ontem que é sempre...
Sorrio do conhecimento antecipado da coisa-nenhuma que serei...
Sorrio ao menos; sempre é alguma coisa o sorrir.

Produtos românticos, nós todos...
E se não fôssemos produtos românticos, se calhar não seríamos.
 nada.

Assim se faz literatura...
Coitadinhos Deuses, assim até se faz a vida!

Os outros também são românticos,
Os outros também não realizam nada, e são ricos e pobres.
Os outros também levam a vida a olhar para as malas a arrumar,
Os outros também dormem ao lado dos papéis meio compostos.
Os outros também sou eu.

Vendedeira da rua cantando o teu pregão como um hino inconsciente,
Rodinha dentada na relojoaria da economia política,
Mãe, presente ou futura, de mortos no descascar dos Impérios,
A tua voz chega-me como uma chamada a parte nenhuma, como o silêncio da vida...

 Olho dos papéis que estou pensando em afinal  não arrumar
Para a janela por onde não vi a vendedeira que ouvi por ela,
E o meu sorriso, que ainda não acabara, acaba no meu cérebro em metafísica.

Descri de todos os deuses diante de uma secretária por arrumar,
Fitei de frente todos os destinos pela distracção de ouvir apregoando-se,
E o meu cansaço é um barco velho que apodrece na praia deserta,
E com esta imagem de qualquer outro poeta fecho a secretária e o poema.

Como um deus, não arrumei nem a secretária nem a vida.

ÁLVARO DE CAMPOS, 15 DE MAIO DE 1929

segunda-feira, 14 de maio de 2012

FAZ HOJE 94 ANOS




Só tu és paz, ó mundo cheio
E inconsciente de mim.
Ó morte, o teu (...) o teu enleio.
E o tu seres Fim!


Passem rodas e passos sobre o meu sono
Será tudo em vão.
Jaz no íntimo (...) do abandono
O meu coração.


FERNANDO PESSOA, 14 DE MAIO DE 1918



domingo, 13 de maio de 2012

FAZ HOJE 84 ANOS




N U V E N S


No dia triste o meu coração, mais triste que o dia...
Obrigações morais e civis?
Complexidade de deveres, de consequências?
Não, nada...
O dia triste, a pouca vontade para tudo...
Nada...


Outros viajam (também viajei), outros estão ao sol
(Também estive ao sol, ou supus que estive),
Todos têm razão, ou vida, ou ignorância simétrica,
Vaidade, alegria e sociabilidade,
E emigram para voltar, ou para não voltar,
Em navios que os transportam simplesmente.
Não sentem o que há de morte em toda a partida,
De mistério em toda a chegada,
De horrível em todo o novo...
Não sentem: por isso são deputados e financeiros,
Dançam e são empregados no comércio,
Vão a todos os teatros e conhecem gente...
Não sentem: para que haveriam de sentir?


Gado vestido dos currais dos Deuses,
Deixá-lo passar engrinaldado para o sacrifício
Sob o sol, álacre, vivo, contente de sentir-se...
Deixai-o passar, mas ai, vou com ele sem grinalda
Para o mesmo destino!
Vou com ele sem o sol que sinto, sem a vida que tenho,
Vou com ele sem desconhecer...


No dia triste o meu coração mais triste que o dia...
No dia triste todos os dias...
No dia tão triste...


ÁLVARO DE CAMPOS, 13 DE MAIO DE 1928

sábado, 12 de maio de 2012

FAZ HOJE 97 ANOS



Não me perguntes porque estou triste...
Fico mais triste por não poder
Dizer-te por que esta dor existe.
E nunca cessa de me vencer.


Ah, ausente lugar da minha mágoa,
Numa ilha cheia de sol e flores
Deve haver ritmos de brisas e água
Bastando às almas por paz e amores.


Deve haver dias ali felizes,
Horas que passam sem se falar...
Ó Morte dize-me em que países
Guardas a vida de além do Mar?...




Dize baixinho, no meu ouvido,
A que distância deste meu ser
Puseste aquilo que eu hei perdido
Antes de a vida me conhecer...


E depois leva-me até essa ilha,
Leva-me longe, perdido em ir...
Ah, o rasto da água que ao luar brilha!
Ah, a viagem para Existir...!


FERNANDO PESSOA, 12 DE MAIO DE 1915

sexta-feira, 11 de maio de 2012

FAZ HOJE 84 ANOS




Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra
Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,
Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir?


Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
Sempre esta inquietação sem propósito,sem nexo, sem consequência,
Sempre, sempre, sempre,
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida...




Maleável aos meus movimentos subconscientes no volante,
Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.
Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
Em quantas coisas que me emprestaram eu sigo no mundo!
Quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quanto que me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!


À esquerda o casebre - sim, o casebre - à beira da estrada.
À direita o campo aberto, com a lua ao longe.
O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,
É agora uma coisa onde estou fechado,
Que só posso conduzir se nele estiver fechado,
Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.


À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.
A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.
Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz.
Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que está em cima
Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real.
Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha
No pavimento térreo,
Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga,
E ela me olhará de esguelha, pelos vidro, até à curva em que me perdi.
Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?
Eu, guiador de automóvel emprestado, ou o automóvel emprestado que eu guio?


Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza ante os campos e a noite ,
Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente,
Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço,
E, num desejo terrível, súbito, violento, inconcebível,
Acelero...
Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo sem vê-lo,
À porta do casebre,
O meu coração vazio,
O meu coração insatisfeito,
O meu coração mais humano do que eu, mais exacto do que a vida.


Na estrada de Sintra, perto da meia noite, ao luar, ao volante,
Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,
Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra, 
Na estrada se Sintra, cada vez menos perto de mim...


ÁLVARO DE CAMPOS, 11 DE MAIO DE 1928

quinta-feira, 10 de maio de 2012

FAZ HOJE 83 ANOS


Meu coração, mistério batido pelas lonas dos ventos...
Bandeira a estralejar desfraldadamente ao alto,
Árvore misturada, curvada, sacudida pelo vendaval,
Agitada como uma espuma verde pregada a si mesma,
(...)
Para sempre condenada à raiz de não se poder exprimir!
Queria gritar alto com uma voz que dissesse!
Queria levar ao menos a outro coração a consciência do meu!
Queria ser lá fora...
Mas o que sou? O trapo que foi bandeira,
As folhas varridas para o canto que foram ramos,
As palavras socialmente desentendidas, até por quem as aprecia,
Eu o que quis fora a minha alma inteira,
E ficou só o chapéu do mendigo debaixo do automóvel,
Estragado estragado,
E o riso dos rápidos soou para trás na estrada dos felizes...

ÁLVARO DE CAMPOS, 10 DE MAIO DE 1929