sábado, 30 de junho de 2012

FAZ HOJE 98 ANOS






DOIS EXCERTOS DE ODES
(fins de duas odes, naturalmente)


I




Vem, noite antiquíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de infinito.


Vem,  vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para ao pé das árvores próximas,
Funde num campo teu, todos os campos que vejo,
Faze da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhes todas as diferenças que de longe eu vejo
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe,
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E deixa só uma luz, e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora,
Na distância subitamente impossível de percorrer.


Nossa Senhora
Das cousas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter connosco ao crepúsculo, à janela,
Dos propósitos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas
Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto,
E que doem por sabermos que nunca os realizaremos...
Vem, e embala-nos,
Vem e afaga-nos,
Beija-nos silenciosamente na fronte,
Tão levemente na fronte que nem saibamos que nos beijam
Senão por uma diferença na alma
Um vago soluço partindo melodiosamente
Do antiquíssimo de nós
Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha
Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos
Porque os sabemos fora de relação com o que há  na vida.


Vem soleníssima,
Soleníssima e cheia
De uma oculta vontade de soluçar,
Talvez porque a alma é grande e vida é pequena,
E todos os gestos não saem do nosso corpo
E só alcançamos onde o nosso braço chega,
E só vemos até onde chega o nosso olhar.


Vem dolorosa,
Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos,
Turris-Eburnea das Tristezas dos Desesperados,
Mão fresca sobre a testa em febre dos Humildes,
Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados.
Vem, lá do fundo
Do horizonte lívido,
Vem e arranca-me
Do solo de angústia e inutilidade
Onde vicejo.
Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido,
Folha a folha lê em mim não sei que sina
E desfolha-me para teu agrado,
Para teu agrado silencioso e fresco.
Uma folha de mim lança para o Norte,
Onde estão a cidades de Hoje que eu tanto amei;
Outra folha de mim lança para o Sul,
Onde estão os mares que os Navegadores abriram;
Outra folha minha atira ao Ocidente,
Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,
Que eu sem conhecer adoro;
E a outra, as outras, o resto de mim
Atira ao Oriente
Ao Oriente de onde vem tudo, o dia e a fé,
Ao Oriente pomposo, fanático e quente,
Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta
Ao Oriente que é tudo o nós não temos,
Que é tudo o que nós não somos,
Ao Oriente onde, - quem sabe? -, Cristo talvez ainda hoje viva,
Onde Deus talvez exista realmente e mandando tudo...


Vem sobre os mares,
Sobre os mares maiores,
Sobre os mares sem horizontes precisos,
Vem e passa a mão pelo dorso da fera,
E acalma-a misteriosamente,
Ó domadora hipnótica das coisas que se agitam muito!


Vem, cuidadosa,
Vem, maternal,
Pé ante pé, enfermeira antiquíssima, que te sentaste
À cabeceira dos deuses das fés já perdidas,
E que viste nascer Jeová e Júpiter,
E sorriste porque tudo te é falso e inútil.


Vem, Noite silenciosa e extática,
Vem envolver na noite manto branco
O meu coração...
Serenamente como uma brisa na tarde leve,
Tranquilamente como um gesto materno afagando,
Com as estrelas luzindo nas tuas mãos
E a lua máscara misteriosa na tua face,
Todos os sons soam de outra maneira 
Quando tu vens.
Quando tu entras baixam todas as vozes,
Ninguém te vê entrar,
Ninguém sabe quando entraste,
Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,
Que tudo perde as arestas e as cores,
E que no alto céu ainda claramente azul
Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem,


A lua começa a ser real.




II


Ah o crepúsculo, o cair da noite, o acender das luzes, nas grandes cidades,
E a mão de mistério que abafa o bulício,
E o cansaço de tudo em nós que nos corrompe
Para uma sensação exacta e precisa e activa da Vida!
Cada rua é um canal de uma Veneza de tédios
E que misterioso o fundo unânime das ruas,
Das ruas ao cair da noite, ó Cesário Verde, ó Mestre,
Ó do "Sentimento de um Ocidental"!


Que inquietação profunda, que desejo de outras cousas,
Que não são países, nem momentos,nem vidas,
Que desejo talvez de outros modos de estados de alma
Humedece interiormente o instante lento e longínquo!


Um horror sonâmbulo entre luzes que se acendem,
Um pavor terno e líquido, encostado às esquinas
Como um mendigo de sensações impossíveis
Que não sabe quem lhas possa dar...


Quando eu morrer,
Quando me for, ignobilmente, como toda a gente,
Por aquele caminho cuja ideia se não pode encarar de frente,
Por aquela porta a que, se pudéssemos assomar, não assomaríamos,
Para aquele porto que o capitão do Navio não conhece,
Seja por essa hora condigna dos tédios que tive,
Por esta hora mística e espiritual e antiquíssima,
Por essa hora em que talvez, há muito mais tempo do que parece,
Platão sonhando viu a ideia de Deus
Esculpir corpo e existência absolutamente plausível
Dentro do seu pensamento exteriorizado como um campo. 


Seja por esta hora que me leveis a enterrar,
Por esta hora que eu nem sei como viver,
Em que não sei que sensações ter ou fingir que tenho,
Por essa hora cuja misericórdia é torturante e excessiva,
Cujas sombras vêm de qualquer outra cousa que não as cousas,
Cuja passagem não roça vestes pelo chão da Vida Sensível 
Nem deixa perfume nos caminhos do Olhar.


Cruza as mão sobre o joelho, ó companheira que eu não tenho nem quero ter,
Cruza as mãos sobre o joelho e olha-me em silêncio
A esta hora em que eu não posso ver tu que me olhas,
Olha-me em silêncio e em segredo e pergunta a ti própria 
- Tu que me conheces - quem eu sou...  


ÁLVARO DE CAMPOS , 30 DE JUNHO DE 1914  







sexta-feira, 29 de junho de 2012

FAZ HOJE 93 ANOS






O sono é suave, mas o meio-sono
É mais suave ainda. Estar sabendo
Que se estará nesse lúcido abandono
É como a brisa à sombra se entretendo.


O amor é suave, mas o amor-talvez
É mais suave ainda. É como estar
Sobre a extensão alegre de um convés
A fitar sem os ver o céu e o mar.


A .vida é suave, mas poder haver
Outra melhor e mais suave ainda.
É como entre a erva alta o malmequer
Que, uma vez visto, todo o campo alinda.


Assim, sob altos ramos rumorosos
Pensei, e a breve e incerta vibração
Dava-me pensamentos mais ditosos
Do que quaisquer felicidades dão.


Pouco sabemos do que há ou somos.
Nada sabemos do que nos espera.
Para uns a vida é fruta, com seus gomos.
Para outros é só a primavera.


FERNANDO PESSOA, 29 DE JUNHO DE 1919

quinta-feira, 28 de junho de 2012

FAZ HOJE 100 ANOS


MORS


Com teus lábios irreais de Noite e Calma
Beija o o meu ser confuso de amargura,
Com teu óleo de Paz e de Doçura
Unge-me esta ânsia vã que não se acalma.


Quantas vezes o Tédio pôs a palma
Sobre a minha cerviz dobrada e obscura;
Quantas vezes a onda da loucura
Me roçou as franjas pela alma.


Corpo da parte espiritual em mim,
Do que em mim não é senso e mutação
E se concebe como sem ter fim,


Põe carinhosamente a tua mão
Na minha fronte, até que eu seja afim
À tua inconsciente imensidão.


FERNANDO PESSOA, 27 DE JUNHO DE 1912

quarta-feira, 27 de junho de 2012

FAZ HOJE 83 ANOS



ACASO


No acaso da rua o acaso da rapariga loura.
Mas não, não é aquela.


A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.


Perco-me subitamente da visão imediata,
Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,
E a outra rapariga passa.


Que grande vantagem recordar intransigentemente!
Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,
E tenho pena de afinal de nem sequer ter olhado para esta.


Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!
Ao menos escrevem-se versos.
Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por génio, se calhar,
Se calhar, ou até sem calhar,
Maravilha das celebridades!


Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos...
Mas isto era respeito de uma rapariga,
De uma rapariga loura,
Mas qual delas?
Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade,
Numa outra espécie de rua;
E houve esta que vi há muito tempo numa outra  cidade
Numa outra espécie de rua;
Porque todas as recordações são a mesma recordação,
Tudo o que foi é a mesma morte,
Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã?


Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional.
Estarei eu a fazer versos em gestos e caretas?
Pode ser... A rapariga loura?
É a mesma afinal...


Só eu,de qualquer modo não sou o mesmo, e isso é o mesmo também.


ÁLVARO DE CAMPOS 27 DE JUNHO DE 1929



terça-feira, 26 de junho de 2012

FAZ HOJE 100 ANOS



Não te esqueças de mim, Mãe natureza,
Não te esqueças de mim que sou teu filho
E há tanto tempo e tanto em mágoa trilho
Os caminhos humanos da incerteza.


Sob meu corpo febril de mágoa presa
Põe teu braço - que eu por dor perfilho
Teu gesto compassivo a que me humilho,
Deita-me, embala, e por minha alma reza.


Mãe da alegria e do fragor da luta
Sê para mim crepúsculo e sossego,
Jorna da paz da alma que labuta...
Ponho a teus pés a vida que renego.


FERNANDO PESSOA, 26 DE JUNHO DE 1912 

segunda-feira, 25 de junho de 2012

FAZ HOJE 100 ANOS




Põe-me as mãos nos ombros...
Beija-me a fronte...
A minha vida é escombros
A minha alma insonte.


Eu não sei porquê,
Meu dês de onde venho,
Sou o ser que vê,
E vê tudo estranho.


Pões a tua mão
Sobre o meu cabelo...
Tudo é ilusão,
Sonhar é sabê-lo.


FERNANDO PESSOA, 25 DE JUNHO DE 1912

domingo, 24 de junho de 2012

FAZ HOJE 77 ANOS




Estou cansado, é claro,
Porque a certa altura, a gente tem de estar cansado.
De que estou cansado não sei.
De nada serviria sabê-lo
Pois o cansaço ficaria na mesma,
A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.
Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto -
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma tranquilidade lúcida
Do entendimento retrospectivo...


E a luxúria muda de não ter já esperanças?


Sou inteligente: eis tudo.
Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,
Que a final a cabeça serve para qualquer coisa.


ÁLVARO DE CAMPOS, 24 DE JUNHO DE 1935

LIVRO DO DESASSOSSEGO


Leve, como uma coisa que começasse, a maresia da brisa pairou de sobre o Tejo e espalhou-se sujamente pelos princípios da Baixa. Nauseava frescamente, num torpor frio de mar morno. Senti a vida no estômago, e o olfacto tornou-se-me uma coisa por detrás dos olhos. Altas, pousavam em nada nuvens ralas, rolos, num cinzento a desmoronar-se para branco falso. A atmosfera era de uma ameaça de
céu cobarde, como a de uma trovoada inaudível, feita de ar somente.
Havia estagnação no próprio voo das gaivotas; pareciam coisas mais leves que o ar, deixadas nele por alguém. Nada abafava. A tarde caía num desassossego nosso; o ar refrescava intermitentemente.
Pobres das esperanças que tenho tido, saídas da vida que tenho tido de ter! São como esta hora e este ar, névoas sem névoa, alinhavos rotos de tormenta falsa. Tenho vontade de gritar, para acabar com a paisagem e a meditação. Mas há maresia no meu propósito, e a baixa-mar em mim deixou descoberto o negrume lodoso que está ali fora e não vejo senão pelo cheiro.
Tanta inconsequência em querer bastar-me! Tanta consciência sarcástica das sensações supostas! Tanto enredo da alma com as sensações, dos pensamentos com o ar e o rio, para dizer que me dói a vida no olfacto e na consciência, para não saber dizer, como na frase simples e ampla do Livro de Job, "Minha alma está cansada de minha vida!"

BERNARDO SOARES
(Do Livro do Desassossego)

sábado, 23 de junho de 2012

FAZ HOJE 78 ANOS




Parte-te contra a parede,
Coração que ninguém quer!
Alma com fome e com sede
Só do que não pode haver,
O que te há-de suceder?


Cai no lixo e fica lá.
Anseio que és somente
De ir buscar o que não há
Onde os outros não hás não são gente!
Quebra-te, coisa que sente!


FERNANDO PESSOA, 23 DE JUNHO DE 1934

sexta-feira, 22 de junho de 2012

FAZ HOJE 95 ANOS




CANÇÃO TRISTE


O Sol, que dá nas ruas, não dá
No meu carinho.
A felicidade quando virá?
Por que caminho?


Hora e horas por fim são meses
De ansiado bem.
Eu penso em ti indecisas vezes
E tu ninguém!


Não tenho barco para a outra margem,
Nem sei do rio.
Ah! E envelhece já a tua imagem
E eu sinto frio.


Não me resigno, não me decido,
Choro querer...
Sempre eu! Ó sorte dá-me o olvido
De pertencer!


Enterrei hoje outra vez meu sonho
Amante má.
Tornou-se triste por ser risonho,
E não ser já.


Inútil brisa roçando leve
Já morta flor,
Saudando a um bem que não se teve
Vácuo com dor.


Triste se é triste, e de o ser não finda
Quando é conforto
Como mãe louca que embala ainda
Um filho morto.


FERNANDO PESSOA, 22 DE JUNHO DE 1917

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Livro do Desassossego


De repente, como se um destino médico me houvesse operado de uma
cegueira antiga com grandes resultados súbitos, ergo a cabeça, da minha vida anónima, para o conhecimento claro de como existo. E vejo que tudo quanto tenho feito, tudo quanto tenho pensado, tudo quanto tenho sido, é uma espécie de engano e de loucura. Maravilho-me do que consegui não ver. Estranho quanto fui e que vejo que afinal não sou.

Olho, como numa extensão ao sol que rompe nuvens, a minha vida passada; e noto, com um pasmo metafísico, como todos os meus gestos mais certos, as minhas ideias mais claras, e os meus propósitos mais lógicos, não foram, afinal, mais que bebedeira nata, loucura natural, grande desconhecimento. Nem sequer representei. Representaram-me.

Fui, não o actor, mas os gestos dele.

Tudo quanto tenho feito, pensado, sido, é uma soma de subordinações, ou a um ente falso que julguei meu, por que agi dele para fora, ou de um peso de circunstâncias que supus ser o ar que respirava. Sou, neste momento de ver, um solitário súbito, que se reconhece desterrado onde se encontrou sempre cidadão. No mais íntimo do que pensei não fui eu.

Vem-me, então, um terror sarcástico da vida, um desalento que passa os
limites da minha individualidade consciente. Sei que fui erro e descaminho, que nunca vivi, que existi somente porque enchi tempo com consciência e pensamento.

E a minha sensação de mim é a de quem acorda depois de um sono cheio de sonhos reais, ou a de quem é liberto, por um terramoto, da luz pouca do cárcere a que se habituara.

Pesa-me, realmente me pesa, como uma condenação a conhecer, esta noção repentina da minha individualidade verdadeira, dessa que andou sempre viajando sonolentamente entre o que sente e o que vê.
É tão difícil descrever o que se sente quando se sente que realmente se existe, e que a alma é uma entidade real, que não sei quais são as palavras humanas com que possa defini-lo. Não sei se estou com febre, como sinto, se deixei de ter a febre de ser dormidor da vida. Sim, repito, sou como um viajante que de repente se encontre numa vila estranha sem saber como ali chegou; e ocorrem-me esses casos dos que perdem a memória, e são outros durante muito tempo. Fui outro durante
muito tempo - desde a nascença e a consciência -, e acordo agora no meio da ponte, debruçado sobre o rio, e sabendo que existo mais firmemente do que fui até aqui. Mas a cidade é-me incógnita, as ruas novas, e o mal sem cura. Espero, pois, debruçado sobre a ponte, que me passe a verdade, e eu me restabeleça nulo e fictício, inteligente e natural.

Foi um momento, e já passou. Já vejo os móveis que me cercam, os desenhos do papel velho das paredes, o sol pelas vidraças poeirentas. Vi a verdade um momento. Fui um momento, com consciência, o que os grandes homens são com a vida. Recordo-lhes os actos e as palavras, e não sei se não foram também tentados vencedoramente pelo Demónio da

Realidade. Não saber de si é viver. Saber mal de si é pensar. Saber de si, de repente, como neste momento lustral, é ter subitamente a noção da mónada íntima, da palavra mágica da alma. Mas essa luz súbita cresta
tudo, consume tudo. Deixa-nos nus até de nós.

Foi só um momento, e vi-me. Depois já não sei sequer dizer o que fui. E, por fim, tenho sono, porque, não sei porquê, acho que o sentido é dormir.


BERNARDO SOARES

(Do Livro do Desassossego)

FAZ HOJE 83 ANOS




TOMÁMOS A VILA DEPOIS DE INTENSO BOMBARDEAMENTO




A criança loura
Jaz no meio da rua.
Tem as tripas de fora
E por uma corda sua
Um combóio que ignora.

A cara está um feixe
De sangue e de nada.
Luz um pequeno peixe -
Dos que bóiam nas banheiras -
À beira da estrada.


Cai sobre a estrada o escuro.
Longe, ainda uma luz doura
A criação do futuro...


E o da criança loura?


FERNANDO PESSOA, 21 DE JUNHO DE 1929

quarta-feira, 20 de junho de 2012

FAZ HOJE 82 ANOS




BICARBONATO DE SÓDIO




Súbita, uma angústia...
Ah que angústia, que náusea do estômago à alma!
Que amigos que tenho tido!
Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido!
Que esterco metafísico os meus propósitos todos!


Uma angústia,
Uma desconsolação da epiderme da alma,
Um deixar cair os braços ao sol-pôr do esforço...
Renego.
Renego tudo.
Renego mais que tudo.
Renego a gládio e fim todos os Deuses e a negação deles.


Mas o que é que me falta, que o sinto faltar-me no estômago e na circulação do sangue?
Que atordoamento vazio me esfalfa no cérebro?


Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?
Não, vou existir. Arre! Vou existir.
E-xis-tir...
E-xis-tir...


Meu Deus! Que budismo me esfria o sangue!
Renunciar de portas todas abertas,
Perante a paisagem todas as paisagens,
Sem esperança, em liberdade,
Sem nexo,
Acidente da inconsequência da superfície das coisas,
Monótono mas dorminhoco,
E que brisas quando as portas e as janelas estão todas abertas!
Que verão agradável dos outros!


Dêem-me de beber, que não tenho sede!


ÁLVARO DE CAMPOS, 20 DE JUNHO DE 1930





terça-feira, 19 de junho de 2012

FAZ HOJE 93 ANOS




Bendito galo que cantas
Da noite que vai ser dia!
Parece que me levantas
Do meu ser em que eu jazia.


Teu grito estrídulo e puro
É a manhã antes dela.
Ainda bem que há futuro!
Brilha mal a última estrela.


Renovas, graças a Deus,
Teu som prolongado e claro.
Clareia a orla dos céus.
Por que penso? por que paro?


FERNANDO PESSOA, 19 DE JUNHO DE 1919

segunda-feira, 18 de junho de 2012

FAZ HOJE 82 ANOS



Estou cansado da inteligência.
Pensar faz mal às emoções.
Uma grande reacção aparece.
Chora-se de repente, e todas as tias velhas fazem chá de novo
Na antiga casa da quinta velha.
Pára, meu coração!
Sossega, minha esperança factícia!
Quem me dera nunca ter sido senão o menino que fui...
Meu sono bom, porque tinha simplesmente sono e não ideias que esquecer!
Meu horizonte de quintal e praia!
Meu fim antes do princípio!


Estou cansado da inteligência.
Se ao menos com ela se percebesse qualquer coisa!
Mas só percebo um cansaço no fundo, como baixam na taça
Aquelas coisas que o vinho tem e amodorram o vinho.


ÁLVARO DE CAMPOS, 18 DE JUNHO DE 1930

Livro do Desassossego



Tenho a náusea física da humanidade vulgar, que é, aliás a única que há. E capricho, às vezes, em aprofundar essa náusea, como se pode provocar um vómito para aliviar a vontade de vomitar.

Um dos meus passeios predilectos, nas manhãs em que temo a banalidade do dia que vai seguir como quem teme a cadeia, é o de seguir pelas ruas fora, antes da abertura das lojas e dos armazéns, e ouvir os farrapos de frases que os grupos de raparigas, de rapazes, e de uns com outras, deixam cair, como esmolas da ironia, na escola invisível da minha meditação aberta.

E é sempre a mesma sucessão de frases… “E então ela disse…” e o tom diz da intriga dela. “Se não for ele, foste tu…” E a voz que responde ergue-se no protesto que já não oiço. “Disseste, sim senhora, disseste…” e a voz da costureira afirma estridentemente “minha mãe diz que não quer…” “Eu?” e o pasmo do rapaz que trás o lunch embrulhado em papel-manteiga não me convence nem deve convencer a loura suja. “Se calhar era…” e o riso de três das quatro raparigas cerca do meu ouvido a obscenidade que (…) “E então pus-me mesmo diante do gajo e ali mesmo na cara dele – na cara dele, hem, ó Zé…” e o pobre diabo mente, pois o chefe do escritório - sei pela voz que o outro contendor era o chefe do escritório que desconheço – não recebeu na arena entre as secretárias o gesto de palhinhas.. “E então eu fui fumar para a retrete…” ri o pequeno dos fundilhos escuros.

Outros, que passam sós ou juntos, não falam, ou falam e não oiço, mas as vozes todas são-me claras por uma transparência instintiva e rota. Não ouso dizer – não ouso dizê-lo a mim mesmo em escrita, ainda que logo a cortasse – o que tenho visto nos olhares casuais, na sua direcção voluntária e baixa, nos seus atravessamentos sujos. Não ouso porque, quando se provoca o vómito, é preciso provocar só um.

“O gajo estava tão grosso que nem via a escada…” Ergo a cabeça. Este rapazote, ao menos, descreve. E esta gente quando descreve é melhor do que quando sente, porque por descrever esquece-se de si. Passa-me a náusea. Vejo o gajo. Vejo-o fotograficamente. Até o calão inocente me anima. Bendito ar que me dá na fronte – o gajo tão grosso que nem via que era de degraus a escada – talvez a escada onde a humanidade sobe aos tombos, apalpando-se e atropelando-se na falsidade regrada do declive aquém do saguão.

A intriga, a maledicência, a prosápia falada do que se não ousou fazer, o contentamento de cada pobre bicho vestido com a consciência inconsciente da própria alma, a sexualidade sem lavagem, as piadas como cócegas de macaco, a horrorosa ignorância da inimportância do que são… Tudo isto me produz a impressão de um animal monstruoso e reles, feito no involuntário dos sonhos, das côdeas húmidas dos desejos, dos restos trincados das sensações.

BERNARDO SOARES, 10 DE ABRIL DE 1930  

domingo, 17 de junho de 2012

FAZ HOJE 83 ANOS




POEMA DE CANÇÃO SOBRE A ESPERANÇA


I


Dá-me lírios, lírios,
E rosas também.
Mas se não tens lírios
Nem rosas a dar-me,
Tem vontade ao menos
De me dar lírios
E também as rosas.
Basta-me a vontade,
Que tens, se a tiveres,
De me dar os lírios 
E as rosas também,
E terei os lírios -
Os melhores lírios -
E as melhores rosas
Sem receber nada, 
A não ser a prenda 
Da da tua vontade
De me dares lírios
E rosas também.


II


Usas um vestido
Que é uma lembrança
Para o meu coração.
Usou-o outrora
Alguém que me ficou
Lembrada sem vista.
Tudo na vida
Se faz por recordações.
Ama-se por memória.
Certa mulher faz-nos ternura
Por um gesto que lembra a nossa mãe.
Certa rapariga faz-nos alegria
Por falar como a nossa irmã.
Certa criança arranca-nos da desatenção
Porque amámos uma mulher parecida com ela
Quando éramos jovens e não lhe falávamos.
Tudo é assim, mais ou menos,
O coração anda aos trambolhões.
Viver é desencontrar-se consigo mesmo.
No fim de tudo, se tiver sono, dormirei.
Mas gostava de te encontrar e que falássemos.
Estou certo que simpatizaríamos um com o outro.
Mas se não nos encontrarmos, guardarei o momento
Em que pensei que nos poderíamos encontrar.
Guardo tudo,
Guarda as cartas que me escrevem,
Guardo até as cartas que não me escrevem -
Santo Deus, a gente guarda tudo mesmo que não queira,
E o teu vestidinho azul, meus Deus, se eu te pudesse atrair
Através dele até mim!
Enfim, tudo pode ser...
És tão nova- tão jovem como diria o Ricardo Reis -
E a minha visão de ti explode literariamnte,


E deito-me para trás na praia e rio como um elemento inferior,
Arre, sentir cansa, e a vida é quente quando o sol está alto.
Boa noite na Austrália!


ÁLVARO DE CAMPOS, 17 DE JUNHO DE 1929



sábado, 16 de junho de 2012

FAZ HOJE 78 ANOS




Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelos sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.


Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar-entre,
Este quase,
Este poder ser que...
Isto.


Um internado num manicómio é, ao menos, alguém.
Eu sou um internado num manicómio sem manicómio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos,
Estou assim...


Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu tecto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.


Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, a por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer -
Júpiter, Jeová, a Humanidade -
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?


Estala, coração de vidro pintado!


ÁLVARO DE CAMPOS 16 DE JUNHO DE 1934