sábado, 30 de novembro de 2013

FAZ HOJE 79 ANOS

Tantos poemas contemporâneos!
Tantos poetas absolutamente de hoje -
Interessante tudo, interessante todos...
Ah, mas é quase tudo...
É tudo vestíbulo
É tudo só para escrever...
Nem arte,
Nem ciência
Nem verdadeira nostalgia...
Este olhou bem o relevo desse cipreste...
Esse viu bem o poente por trás do cipreste...
Este reparou bem na emoção que tudo isso daria...
Mas depois?...
Ah, meus poetas, meus poemas - e depois?
O pior é sempre o depois...
É que para dizer é preciso pensar -
Pensar com o segundo pensamento -
E vocês, meus velhos, poetas e poemas,
Pensam só com a rapidez primária da asneira - é (...) e da pena - 

Mais vale o clássico seguro,
Mais vale o romântico cantante,
Mais vale qualquer coisa, ainda que má,
Que os arredores inconstruídos duma qualquer coisa boa ...
"Tenho a minha alma!"
Não, não tens: tens a sensação dela.
Cuidado com a sensação!
Muitas vezes é dos outros,
E muitas vezes é nossa
Só pelo acidente estonteado de a sentirmos...


ÁLVARO DE CAMPOS, 30 DE NOVEMBRO DE 1934

Hmenagem a Fernando Pessoa

1888 - 1935

Faz hoje 78 que, com apenas 47 anos, morreu Fernando Pessoa.
Estes poemas são uma homenagem de gratidão por tanta Beleza que ele nos legou.





Ao pé de mim os mortos esquecidos
Volveram todos. Eu em sonhos os vi.
Se os amei, como foi que os esqueci?
Se os esqueci, como foram queridos?

Rápida vida, como os fizeste idos!
Com que fria memória os lembro aqui!
Já desleixo chorar o que perdi,
Lembro-os longe da sombra dos sentidos.

Quando os perdi, pensei: Cada momento
Me lembrará sua presença morta,
Eterna em meu constante pensamento.

Mas lentamente a vida fecha a porta.
Fechada toda, o olhar 'stá desatento.
Para longe de Deus quem me transporta?

FERNANDO PESSOA, 11 DE ABRIL DE  1925




    
Se te queres matar, por que não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por actores de convenções e poses determinadas,
O circo polícromo do nosso dinamismo, sem fim?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E, de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes, como eu, a morte em literatura!

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...

A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outro, sobretudo a morte.
Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros...

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando entre as últimas notícias dos jornais da noite,
Interseccionando a pena de teres morrido com o último crime...
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...

Depois a retirada preta para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro um alívio em todos
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas aniversáriamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.
Mais nada, mais nada. Absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti,
Duas vezes no ano suspiram ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?
Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?

Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem,
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?
És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva.
És importante para ti, porque só tu és importante para ti.
Se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? o que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente:
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células nocturnamente conscientes
Pela nocturna consciências da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atómica das cousas,
Pelas paredes turbilhonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...


ÁLVARO DE CAMPOS, 26 DE ABRIL DE 1926




Tão cedo tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.

RICARDO REIS, 3 DE NOVEMBRO DE 1923



É talvez o último dia da minha vida.
Saudei o sol, levantando a mão direita,
Mas não o saudei, para lhe dizer adeus.
Fiz sinal de gostar de o ver ainda, mais nada.

ALBERTO CAEIRO, 1920?

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

FAZ HOJE 79 ANOS

Quando os anjos são gente são crianças, 
Crianças pequeninas que não crescem 
Porque, como aqui são 
Visitas, só, das nossas esperanças, 
Sorriem para o nosso coração 
Só um ano ou dois; depois desaparecem. 

Será que o céu não pode aqui deixá-las 
Mais que o tempo, tão pouco!, que há que dar 
Para que o coração aprenda a amá-las, 
E assim possa aprender a tudo amar? 

Não sei... Talvez saudades da outra vida 
As façam regressar depressa ao céu 
Depois de estar sua missão cumprida - 
Qualquer missão, por nós desconhecida, 
De amor e paz, que Deus nos deu. 

Vêm, sorriem, passam, como a flor 
Deixa cair as pétalas já fanadas... 

Ai, Maria Leonor, 
Teus olhos cujo azul era o amor, 
E as tuas pequenas mãos tão lindas! 


FERNANDO PESSOA, 29 DE NOVEMBRO DE 1934


quinta-feira, 28 de novembro de 2013

FAZ HOJE 80 ANOS

Nas margens do rio verde 
Que por verdes margens corre 
Meu pensamento se perde. 
Como se a alma o deserde, 
Meu saber que penso morre. 

Tão lento, tão afastado 
Do propósito de um curso 
Vai o rio, que o meu fado 
Parece bem figurado 
Nesse insciente percurso. 

Nada lastimo nem peço. 
Nada desejo nem creio. 
No rio verde me esqueço 
Até de que sou possesso 
Da ausência do meu enleio. 

Nada, nem remos nem velas, 
Turvam a água do rio. 
E, quando anoitece, aquelas 
Ondas vão sob as estrelas 
No seu mesmo nada a fio. 

Nada? Não. No meu olhar 
E no que penso por ver 
É que há um rio a mudar, 
É que há 'sperança de um mar, 
Mas nem' desejo de o ter.


FERNANDO PESSOA, 28 DE NOVEMBRO DE 1933


quarta-feira, 27 de novembro de 2013

FAZ HOJE 99 ANOS

O melodioso sistema do Universo,
O grande festival pagão de haver o sol e a lua
E a titânica dança das estações
E o ritmo plácido das eclípticas
Mandando tudo estar calado.
E atender apenas ao brilho exterior do universo.

ÁLVARO DE CAMPOS, 27 DE NOVEMBRO DE 1914


terça-feira, 26 de novembro de 2013

FAZ HOJE 97 ANOS

O rio era por cidades mortas... 
Às suas negras e esquecidas portas 
A noite estava contra as sentinelas... 
De luz, sobre o rio, eram janelas 
E o silêncio era o resto. Nunca ouvi 
Voz suave e doce que não soasse a ti 
Nem menos me trouxesse do que és. 

O rio ia, e eu tinha sob os pés 
Imaterial, a paisagem sem forma 
Em que esta melodia te transforma... 
Pompa de pompas, divino posto 
Contra lembrar-te, fúnebre ante-gosto 
Em salas da eça posta contra a idade 
Em que eu te tinha. Pálida, a cidade 
Ao luar, na sombra nítida acentua 
Seu caminho subtil 
Onde às piscinas do jardim dado a abril 
Desce a sombra da ninfa e ali flutua. 


FERNANDO PESSOA, 26 DE NOVEMBRO DE 1916


segunda-feira, 25 de novembro de 2013

FAZ HOJE 85 ANOS

Na rua do volta-atrás 
Antes de chegar ao fim, 
Encontrei o meu rapaz 
E, tem graça, ao mesmo tempo 
Ele me encontrou a mim. 
Na Rua do Volta-Atrás 
As coisas passam-se assim. 

Na Rua do Volta-Atrás 
Passam coisas do amor. 
São coisas que a gente faz... 
E fá-las enquanto é tempo 
Que depois não tem sabor. 
Na Rua do Volta-Atrás 
Parar é que tem valor. 

Na Rua do Volta-Atrás 
A todos que vão seguir... 
Mas vêem que a vida faz 
Mais sentido a passar tempo 
Para quem só quer partir. 
Na Rua do Volta-Atrás 
Voltei-me para trás a vir. 


FERNANDO PESSOA, 25 DE NOVEMBRO DE 1928


domingo, 24 de novembro de 2013

FAZ HOJE 89 ANOS



CANÇÕES DA CRIANÇA ADULTA

(I)


Ó borboleta de algumas cores
Quem me dera ir aonde tu fores,
Talvez a vida seja melhor
Fora de aqui, seja onde for.
Aqui a vida tem sempre gente
E há muita cousa que a gente sente
Por não ser sempre inteligente.
Ó borboleta, quem dera ter
As tuas asas para viver;
Que inda que o fim fosse morrer,
Que mais fé tem quem sabe ler?

(II)

Tanta gente a pensar, tanta gente a fazer
E a vida sempre a correr
Num sentido que não tem nada com isso...
E isso tem alegria?
Ó vida, deixa-me viver!...
Tanta gente a ser diferente
E tudo a mesma gente!
Tanta gente fora de aqui
Mas toda ela indo estar ali.
Tanta gente a pensar, tanta gente a sentir,
E afinal só o que acontece
É que se pode conseguir.

(III)

Casas com gente, e gente na rua,
E a gente, despida, fica só nua.
Buscam alguns um brinquedo só
Os outros buscam p'ra fazer dó
Com vidas e cousas que vão vingando
E toda a gente vive enganando.
Se toda a gente dissesse a verdade
A vida da gente era só metade,
Por isso é preciso buscar seu riso,
Quer com brinquedos quer com a vida
E fazer de conta que há cristo
E puxar à linha a máquina partida.

(IV)

Boneca, quem sabe se és alguém?
A gente toda que a vida tem
Amar-se mais que a boneca, sim,
Mas está toda fora de mim,
Como a boneca que é só assim.
Quem sabe o que é ser boneco hem?
Quem sabe se todos somos assim?



FERNANDO PESSOA, 24 DE NOVEMBRO DE 1924