Tantos poemas contemporâneos!
Tantos poetas absolutamente de hoje -
Interessante tudo, interessante todos...
Ah, mas é quase tudo...
É tudo vestíbulo
É tudo só para escrever...
Nem arte,
Nem ciência
Nem verdadeira nostalgia...
Este olhou bem o relevo desse cipreste...
Esse viu bem o poente por trás do cipreste...
Este reparou bem na emoção que tudo isso daria...
Mas depois?...
Ah, meus poetas, meus poemas - e depois?
O pior é sempre o depois...
É que para dizer é preciso pensar -
Pensar com o segundo pensamento -
E vocês, meus velhos, poetas e poemas,
Pensam só com a rapidez primária da asneira - é (...) e da pena -
Mais vale o clássico seguro,
Mais vale o romântico cantante,
Mais vale qualquer coisa, ainda que má,
Que os arredores inconstruídos duma qualquer coisa boa ...
"Tenho a minha alma!"
Não, não tens: tens a sensação dela.
Cuidado com a sensação!
Muitas vezes é dos outros,
E muitas vezes é nossa
Só pelo acidente estonteado de a sentirmos...
ÁLVARO DE CAMPOS, 30 DE NOVEMBRO DE 1934
sábado, 30 de novembro de 2013
Hmenagem a Fernando Pessoa
1888 - 1935
Faz
hoje 78 que, com apenas 47 anos, morreu Fernando Pessoa.
Estes
poemas são uma homenagem de gratidão por tanta Beleza que ele nos legou.
Ao pé de mim os mortos esquecidos
Volveram todos. Eu em sonhos os vi.
Se os amei, como foi que os esqueci?
Se os esqueci, como foram queridos?
Rápida vida, como os fizeste idos!
Com que fria memória os lembro aqui!
Já desleixo chorar o que perdi,
Lembro-os longe da sombra dos sentidos.
Quando os perdi, pensei: Cada momento
Me lembrará sua presença morta,
Eterna em meu constante pensamento.
Mas lentamente a vida fecha a porta.
Fechada toda, o olhar 'stá desatento.
Para longe de Deus quem me transporta?
FERNANDO PESSOA, 11 DE ABRIL DE
1925
Se te queres matar, por que não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por actores de convenções e poses determinadas,
O circo polícromo do nosso dinamismo, sem fim?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E, de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes, como eu, a morte em literatura!
Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...
A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outro, sobretudo a morte.
Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros...
Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando entre as últimas notícias dos jornais da noite,
Interseccionando a pena de teres morrido com o último crime...
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...
Depois a retirada preta para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro um alívio em todos
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...
Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas aniversáriamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.
Mais nada, mais nada. Absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti,
Duas vezes no ano suspiram ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.
Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?
Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem,
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?
És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva.
És importante para ti, porque só tu és importante para ti.
Se és assim, ó mito, não serão os outros assim?
Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? o que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?
Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente:
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células nocturnamente conscientes
Pela nocturna consciências da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atómica das cousas,
Pelas paredes turbilhonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...
ÁLVARO DE CAMPOS, 26 DE ABRIL DE 1926
Tão cedo tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.
RICARDO REIS, 3 DE NOVEMBRO DE 1923
É talvez o último dia da minha vida.
Saudei o sol, levantando a mão direita,
Mas não o saudei, para lhe dizer adeus.
Fiz sinal de gostar de o ver ainda, mais nada.
sexta-feira, 29 de novembro de 2013
FAZ HOJE 79 ANOS
Quando os anjos são gente são crianças,
Crianças pequeninas que não crescem
Porque, como aqui são
Visitas, só, das nossas esperanças,
Sorriem para o nosso coração
Só um ano ou dois; depois desaparecem.
Será que o céu não pode aqui deixá-las
Mais que o tempo, tão pouco!, que há que dar
Para que o coração aprenda a amá-las,
E assim possa aprender a tudo amar?
Não sei... Talvez saudades da outra vida
As façam regressar depressa ao céu
Depois de estar sua missão cumprida -
Qualquer missão, por nós desconhecida,
De amor e paz, que Deus nos deu.
Vêm, sorriem, passam, como a flor
Deixa cair as pétalas já fanadas...
Ai, Maria Leonor,
Teus olhos cujo azul era o amor,
E as tuas pequenas mãos tão lindas!
FERNANDO PESSOA, 29 DE NOVEMBRO DE 1934
quinta-feira, 28 de novembro de 2013
FAZ HOJE 80 ANOS
Nas margens do rio verde
Que por verdes margens corre
Meu pensamento se perde.
Como se a alma o deserde,
Meu saber que penso morre.
Tão lento, tão afastado
Do propósito de um curso
Vai o rio, que o meu fado
Parece bem figurado
Nesse insciente percurso.
Nada lastimo nem peço.
Nada desejo nem creio.
No rio verde me esqueço
Até de que sou possesso
Da ausência do meu enleio.
Nada, nem remos nem velas,
Turvam a água do rio.
E, quando anoitece, aquelas
Ondas vão sob as estrelas
No seu mesmo nada a fio.
Nada? Não. No meu olhar
E no que penso por ver
É que há um rio a mudar,
É que há 'sperança de um mar,
Mas nem' desejo de o ter.
FERNANDO PESSOA, 28 DE NOVEMBRO DE 1933
quarta-feira, 27 de novembro de 2013
FAZ HOJE 99 ANOS
O melodioso sistema do Universo,
O grande festival pagão de haver o sol e a lua
E a titânica dança das estações
E o ritmo plácido das eclípticas
Mandando tudo estar calado.
E atender apenas ao brilho exterior do universo.
ÁLVARO DE CAMPOS, 27 DE NOVEMBRO DE 1914
terça-feira, 26 de novembro de 2013
FAZ HOJE 97 ANOS
O rio era por cidades mortas...
Às suas negras e esquecidas portas
A noite estava contra as sentinelas...
De luz, sobre o rio, eram janelas
E o silêncio era o resto. Nunca ouvi
Voz suave e doce que não soasse a ti
Nem menos me trouxesse do que és.
O rio ia, e eu tinha sob os pés
Imaterial, a paisagem sem forma
Em que esta melodia te transforma...
Pompa de pompas, divino posto
Contra lembrar-te, fúnebre ante-gosto
Em salas da eça posta contra a idade
Em que eu te tinha. Pálida, a cidade
Ao luar, na sombra nítida acentua
Seu caminho subtil
Onde às piscinas do jardim dado a abril
Desce a sombra da ninfa e ali flutua.
FERNANDO PESSOA, 26 DE NOVEMBRO DE 1916
segunda-feira, 25 de novembro de 2013
FAZ HOJE 85 ANOS
Na rua do volta-atrás
Antes de chegar ao fim,
Encontrei o meu rapaz
E, tem graça, ao mesmo tempo
Ele me encontrou a mim.
Na Rua do Volta-Atrás
As coisas passam-se assim.
Na Rua do Volta-Atrás
Passam coisas do amor.
São coisas que a gente faz...
E fá-las enquanto é tempo
Que depois não tem sabor.
Na Rua do Volta-Atrás
Parar é que tem valor.
Na Rua do Volta-Atrás
A todos que vão seguir...
Mas vêem que a vida faz
Mais sentido a passar tempo
Para quem só quer partir.
Na Rua do Volta-Atrás
Voltei-me para trás a vir.
FERNANDO PESSOA, 25 DE NOVEMBRO DE 1928
domingo, 24 de novembro de 2013
FAZ HOJE 89 ANOS
CANÇÕES DA CRIANÇA
ADULTA
(I)
Ó borboleta de algumas cores
Quem me dera ir aonde tu fores,
Talvez a vida seja melhor
Fora de aqui, seja onde for.
Aqui a vida tem sempre gente
E há muita cousa que a gente sente
Por não ser sempre inteligente.
Ó borboleta, quem dera ter
As tuas asas para viver;
Que inda que o fim fosse morrer,
Que mais fé tem quem sabe ler?
(II)
Tanta gente a pensar, tanta gente a fazer
E a vida sempre a correr
Num sentido que não tem nada com isso...
E isso tem alegria?
Ó vida, deixa-me viver!...
Tanta gente a ser diferente
E tudo a mesma gente!
Tanta gente fora de aqui
Mas toda ela indo estar ali.
Tanta gente a pensar, tanta gente a sentir,
E afinal só o que acontece
É que se pode conseguir.
(III)
Casas com gente, e gente na rua,
E a gente, despida, fica só nua.
Buscam alguns um brinquedo só
Os outros buscam p'ra fazer dó
Com vidas e cousas que vão vingando
E toda a gente vive enganando.
Se toda a gente dissesse a verdade
A vida da gente era só metade,
Por isso é preciso buscar seu riso,
Quer com brinquedos quer com a vida
E fazer de conta que há cristo
E puxar à linha a máquina partida.
(IV)
Boneca, quem sabe se és alguém?
A gente toda que a vida tem
Amar-se mais que a boneca, sim,
Mas está toda fora de mim,
Como a boneca que é só assim.
Quem sabe o que é ser boneco hem?
Quem sabe se todos somos assim?
FERNANDO PESSOA, 24 DE NOVEMBRO DE 1924
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