sábado, 16 de fevereiro de 2019

FAZ HOJE 99 ANOS




No limiar que não é meu
Sento-me e deixo o irreflectido olhar
Encher-se, sem eu ver, de campos e céu.
Se é tarde ou cedo, deixo de notar.
Nada me diz de si qualquer coisa que eu
Possa gozar.

Pelos campos sem fim
Sinto correr, porque na face o sinto,
Um vago vento, estranho todo em mim.
Não sei se penso, ou em que dor consinto
Que seja minha ou desespero sem fim,
Que minto.

Na inútil hora
Eu, mais inútil que ela, sem sentir
Fito com um olhar que já nem chora
A Dor ou desdém, dolo ou infiel sorrir,
O absurdo céu onde nenhuma causa mora
Para eu fruir.

Apenas, vaga,
Não uma esp'rança, mas uma saudade
Do tempo em que a saudade, como vaga,
Dava na praia da minha ansiedade,
Me torna e um surdo marulhar meu ser alaga
De vacuidade.

Sim, só pranto
Já nem choro, tornado um impreciso
Sombrio véu em torno ao desencanto
Da minha vida sem razão nem riso
Ma turva o olhar um pouco, e o campo um tanto
Torna impreciso.

Mas acordo, e com vão
Olhar ainda, mas já diferente,
Por 'star ausente dele o coração,
E eu outra vez nem mesmo descontente,
Fito o céu calmo, o campo, a alegre solidão
Inconsciente.

Nada, só o dia -
Se é tarde ou cedo continuo a errar -
Alheio a mim, a tudo dá alegria
De não ter coração com que agitar
O corpo. E quando vier a noite, tudo esfria
Mas sem chorar.

Isto, e eu comigo
Posto no eterno aquém das coisas calmas
Que a vida externa mostra ao céu amigo -
Campos ao sol, vivas flores-almas.
Isto só, e não ter o coração abrigo
Nem sol as almas!

FERNANDO PESSOA, 16 DE FEVEREIRO DE 1920


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