segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

FAZ HOJE 102 ANOS




A MARINHA

Mas o vento do Norte,
O vento do norte cheio de espuma e frio
Soprou sobre a tua sorte e sobre a minha sorte
E a nossa sorte, como uma areia levada, fugiu.
Perdeu-se na noite,
Perdeu-se na noite e no longe com o vento a soprar
E só fica na minha memória a memória do açoite
Do vento na noite que levou a minh'alma a uivar, a uivar...

Pela praia nocturna, meu amor perdido, pela praia...
Pela praia nocturna sob um céu sem lua e sem calma
Nós demos as mãos
E esquecemos a vida, e o mundo, a nossa própria alma...
O som do mar embalava, o seu ruído brusco perdia
A rudeza, o ser só exterior, vinha aureolar
Aquilo invisível em nós que nos alava e prendia
E o resto era a noite longínqua e o suspiro do mar.

Passamos por tantas terras dentro das emoções!
Buscamos tão órfãos a porta e a mãe da nossa alma!
Mas as mãos que se tinham presas sentiram os corações
Acharam-se no nosso silêncio e na noite talvez calma.

Nós éramos o Amor. Fora de nós o oceano
Levou na noite de trás para diante o sossego do ruído
Que tarda como nós, mas não morre, embalou o meu engano
Que era certo agora em nós e no nosso absorto sentido.

Sempre estava connosco salvo a abdicação do mundo
Que toca na alma na noite e no céu e no mar
Mas o nosso amor era uma ilha no oceano sem fundo
Do consolo da vida, das ondas lá longe e do vento a esperar.

Nada jurámos. A alma era tudo, o corpo da hora
Velou-se na sombra da noite absoluta e no mar que tremia...
Quem havia além de nós com alma e com vida agora?
Fora de nós de quente e humano e certo, o que havia?

Não tínhamos vivido antes daquele momento
Antes tinha sido o nosso corpo e a nossa alma...
Vindo de uma outra bando o nosso pensamento
Que era uma calma morte e a dita da noite sem calma.

Tudo pensámos menos o amor, e só ela havia...
Cada um era só ele; o outro não era preciso...
As mãos tornando-se leves na alma que não as sentia
E tudo estava em cada um por ser o outro, o indeciso...

Pela primeira vez nada sobrava ou faltava -
Pela primeira vez nada era aos nossos pés
Nada era nada sobre o não que ali estava
Pela primeira vez, pela primeira vez

Uma pessoa impossível feita de morte dos dois
Passeava sozinha, era o nada tudo, ali na areia...
E o mundo era uma ilusão, com seus dias e com seus sóis,
E a alma era falsa com a sua dor e a alegria em que anseia.

Não bem alma, não bem vida, apenas amor...
Não bem nós, nem o mundo, uma outra cousa real...
E o espaço vazio em que isso era verdadeiro, um sabor
A unidade suprema, além do bem e do mal.

FERNANDO PESSOA, 25 DE FEVEREIRO DE 1917


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