segunda-feira, 21 de maio de 2018

FAZ HOJE 89 ANOS





Sim, sim, eu conheci-o.
Realmente era negro, luzidio,
Madrugador, jovial.
Sim, e de manhã cedo
Deveras se encontrava entre o arvoredo
Mas sem risadas (de ave fazem medo),
Nem ( que quer isso dizer?) de cristal.
Nesta altura, acabado o romantismo,
Um melro só a um melro é que é igual.

Quanto à história, nem cismo.
Acabou mal.
Com Natureza contra Bíblia, como,
Em épocas de um outro assomo,
Seria Bíblia contra a Natureza.
Com igual misticismo.
Veio o Junqueiro, filho da Certeza
E o melro morreu realmente
(Mas morreu de o fazerem gente)
Caindo do ar real e insciente
Num gesto de asa que despreza.

E o gesto de asa diz, - pois tudo fala
No romantismo, ainda quando cala:

"Sou um melro e não um sócio vil
Da Associação do Registo Civil.
Sou um melro totalmente, e existo
Alheio a Cristo ou a não-Cristo,
Sem dar lição alguma sobre nada.
Mera alimária alada,
Inconsciente, como o céu de estar
Onde está, de mover-me e de cantar.
E se morri, arre!, morri.
Com isso provo que vivi.
Morri: pois deixem-me morrer
Sem me quererem compreender.

"E quanto aos versos subversivos
De Igrejas e Escrituras,
Deixem-se disso: são motivos
De audácia que já nem são bravuras.
Vejam claro,
Escrevam raro,
Tenham verdade ao menos no sentir,
E então por certo me ouvirão a rir,
Madrugador, jovial,
Logo de manhã cedo
Cantando entre a verdade do arvoredo
E não entre a mentira universal.

FERNANDO PESSOA, 21 DE MAIO DE 1929


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