Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode
fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de
janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco
para o que eu quero.
A entrada de Singapura, manhã
subindo, cor verde,
O coral das Maldivas em passagem
cálida,
Macau à uma hora da noite... Acordo
de repente...
Yat-lô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô... Ghi - ...
E aquilo soa-me do fundo de uma
outra realidade...
A estatura norte-africana quase de
Zanzibar ao sol...
Dar-es-Salaam (a saída é difícil)...
Majunga, Nossi-Bé, verduras de
Madagáscar...
Tempestades em torno ao Guardafui...
E o Cabo da Boa Esperança nítido ao
sol da madrugada...
E a Cidade do Cabo com a Montanha da
Mesa ao fundo...
Viajei por mais terras do que
aquelas em que toquei...
Vi mais paisagens do que aquelas em
que pus os olhos...
Experimentei mais sensações do que
todas as sensações que senti,
Porque, por mais que sentisse, sempre
me faltou que sentir
E a vida sempre me doeu, sempre foi
pouco, e eu infeliz.
A certos momentos do dia recordo
tudo isto e apavoro-me,
Penso em que é que me ficará desta
vida aos bocados, deste auge,
Desta estrada às curvas, deste
automóvel à beira da estrada, deste aviso,
Desta turbulência tranquila de
sensações desencontradas,
Desta transfusão, desta
insubsistência, desta convergência iriada,
Deste desassossego no fundo de todos
os cálices,
Desta angústia no fundo de todos os
prazeres,
Desta saciedade antecipada na asa de
todas as chávenas,
Deste jogo de cartas fastiento entre
o Cabo da Boa Esperança e as Canárias.
Não sei se a vida é pouco ou de mais
para mim.
Não sei se sinto de mais ou de
menos, não sei
Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio
na inteligência,
Consanguinidade com o mistério das
coisas, choque
Aos contactos, sangue sob golpes,
estremeção aos ruídos,
Ou se há outra significação para
isto mais cómoda e feliz.
Seja o que for, era melhor não ter
nascido,
Porque, de tão interessante que é a
todos os momentos,
A vida chega a doer, a enjoar, a
cortar, a roçar, a ranger,
A dar vontade de dar gritos, de dar
pulos, de ficar no chão, de sair
Para fora de todas as casas, de
todas as lógicas e de todas as sacadas,
E ir ser selvagem para a morte entre
árvores e esquecimentos
Entre tombos, e perigos e ausência
de amanhãs,
E tudo isto devia ser qualquer outra
coisa mais parecida com o que eu penso,
Com o que eu penso ou sinto, que eu
nem sei qual é, ó vida.
Cruzo os braços sobre a mesa, ponho
a cabeça sobre os braços,
E preciso querer chorar, mas não sei
ir buscar as lágrimas...
Por mais que me esforce por ter uma
grande pena de mim, não choro,
Tenho a alma rachada sob o indicador
curvo que lhe toca...
Que há-de ser de mim? Que há-de ser
de mim?
Correram o bobo a chicote do
palácio, sem razão,
Fizeram o mendigo levantar-se do
degrau onde caíra.
Bateram na criança abandonada e
tiraram-lhe o pão das mãos.
Oh mágoa imensa do mundo, o que
falta é agir...
Tão decadente, tão decadente, tão
decadente...
Só estou bem quando ouço música, e
nem então.
Jardins do século dezoito antes de
89,
Onde estais vós, que eu quero chorar
de qualquer maneira?
Como um bálsamo que não consola
senão pela ideia de que é um bálsamo,
A tarde de hoje e de todos os dias
pouco a pouco, monótona, cai.
Acenderam as luzes, cai a noite, a
vida substitui-se.
Seja de que maneira for, é preciso
continuar a viver.
Arde-me a alma como se fosse uma
mão, fisicamente.
Estou no caminho de todos e esbarram
comigo.
Minha quinta na província,
Haver menos que um comboio, uma
diligência e a decisão de partir entre mim e ti.
Assim fico, fico... Eu sou o que
sempre quer partir,
E fica sempre, fica sempre, fica
sempre,
Até à morte fica, mesmo que parta,
fica, fica, fica...
Torna-me humano, ó noite, torna-me
fraterno e solícito.
Só humanitariamente é que se pode
viver.
Só amando os homens, as acções, a
banalidade dos trabalhos,
Só assim - ai de mim! -, só assim se
pode viver
Só assim, ó noite, e eu nunca
poderei ser assim!
Vi todas as coisas, e maravilhei-me
de tudo,
Mas tudo ou sobrou ou foi pouco -
não sei qual - e eu sofri.
Vivi todas as emoções, todos os
pensamentos, todos os gestos,
E fiquei tão triste como se tivesse
querido vivê-los e não conseguisse
Amei e odiei como toda a gente,
Mas para toda a gente isso foi
normal e instintivo,
E para mim foi sempre a excepção, o
choque, a válvula, o espasmo.
Vem, ó noite, e apaga-me, vem e
afoga-me em ti.
Ó carinhosa do Além, senhora do luto
infinito,
Mágoa externa da Terra, choro silencioso
do Mundo.
Mãe suave e antiga das emoções sem
gesto,
Irmã mais velha, virgem e triste,
das ideias sem nexo,
Noiva esperando sempre os nossos
propósitos incompletos,
A direcção constantemente abandonada
do nosso destino,
A nossa incerteza pagã sem alegria,
A nossa fraqueza cristã sem fé,
O nosso budismo inerte, sem amor
pelas coisas nem êxtases,
A nossa febre, a nossa palidez, a
nossa impaciência de fracos,
A nossa vida, ó mãe, a nossa perdida
vida...
Não sei sentir, não sei ser humano,
conviver
De dentro da alma triste com os
homens meus irmãos na terra.
Não sei ser útil mesmo sentindo, ser
prático, ser quotidiano, nítido,
Ter um lugar na vida, ter um destino
entre os homens,
Ter uma obra, uma força, uma
vontade, uma horta,
Uma razão para descansar, uma
necessidade de me distrair,
Uma coisa vinda directamente da
natureza para mim.
Por isso sê para mim materna, ó
noite tranquila...
Tu, que tiras o mundo ao mundo, tu
que és a paz,
Tu que não existes, que és só a
ausência da luz,
Tu que não és uma coisa, um lugar,
uma essência, uma vida,
Penélope da teia, amanhã desfeita,
da tua escuridão,
Circe irreal dos febris, dos
angustiados sem causa,
Vem para mim, ó noite, estende para
mim as mãos,
E sê frescor e alívio, ó noite,
sobre a minha fronte...
Tu, cuja vinda é tão suave que
parece um afastamento,
Cujo fluxo e refluxo de treva,
quando a lua bafeja,
Tem ondas de carinho morto, frio de
mares de sonho,
Brisas de paisagens supostas para a
nossa angústia excessiva...
Tu, palidamente, tu, flébil, tu,
liquidamente,
Aroma de morte entre flores, hálito
de febre sobre margens,
Tu, rainha, tu castelã, tu, dona
pálida, vem...
ÁLVARO DE CAMPOS, 22 DE MAIO DE 1916
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