quinta-feira, 7 de junho de 2012

LIVRO DO DESASSOSSEGO



Releio passivamente, recebendo o que sinto como uma inspiração e um livramento, aquelas frases simples do Caeiro, na referência natural do que resulta do pequeno tamanho da sua aldeia. Dali, diz ele, porque é pequena, pode ver-se mais do mundo do que da cidade…

                   “Porque eu sou do tamanho do que vejo
                     E não do tamanho da minha altura.”

Frases como estas, que parecem crescer sem vontade que as houvesse dito, limpam-me de toda a metafísica que espontaneamente acrescento à vida. Depois de as ler, chego à minha janela sob a rua estreita olho o grande céu e os muitos astros, e sou livre com um esplendor alado cuja vibração me estremece no corpo todo.

“Sou do tamanho do que vejo!” Cada vez que penso esta frase com toda a atenção dos meus nervos, ela me parece mais destinada a reconstruir consteladamente o universo. “Sou do tamanho do que vejo!” Que grande posse mental vai desde o poço das emoções profundas até as altas estrelas que se reflectem nele, e, assim, em certo modo, ali estão.

E já agora, consciente de saber ver, olho a vasta metafísica objectiva dos céus todos com uma segurança que me dá vontade de morrer cantando. “Sou do tamanho do que vejo!” E o vago luar, inteiramente meu, começa a estragar de vago, o azul meio-negro do horizonte.

Tenho vontade de erguer os braços e gritar coisas de uma selvajaria ignorada, de dizer palavras aos mistérios altos, de afirmar uma nova personalidade larga aos grandes espaços da matéria vazia.

Mas recolho-me e abrando. “Sou do tamanho do que vejo!” E a frase fica-me sendo a alma inteira, encosto a ela todas as emoções que sinto, e sobre mim, por dentro, como a cidade por fora, cai a paz indecifrável do luar duro que começa largo com o amanhecer.

BERNARDO SOARES, 24 DE MARÇO DE 1930

(Do Livro do Desassossego)



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