Grandes são os desertos, e tudo é
deserto.
Não são algumas toneladas de pedras
ou tijolos ao alto
Que disfarçam o solo, o tal solo que
é tudo.
Grandes são os desertos e as almas
desertas e grandes -
Desertas porque não passa por elas senão
elas mesmas,
Grandes porque de ali se vê tudo, e
tudo morreu.
Grandes são os desertos, minha alma!
Grandes são os desertos.
Não tirei bilhete para a vida,
Errei a porta do sentimento,
Não houve vontade ou ocasião que eu
não perdesse.
Hoje não me resta, em vésperas de
viagem,
Com a mala aberta esperando a
arrumação adiada,
Sentado na cadeira em companhia com
as camisas que não cabem,
Hoje não me resta (à parte o
incómodo de estar assim sentado)
Senão saber isto:
Grandes são os desertos, e tudo é
deserto.
Grande é a vida, e não vale a pena
haver vida.
Arrumo melhor a mala com os olhos de
pensar em arrumar
Que com arrumação das mãos factícias
(e creio que digo bem).
Acendo o cigarro para adiar a
viagem,
Para adiar todas as viagens.
Para adiar o universo inteiro.
Volta amanhã, realidade!
Basta por hoje, gentes!
Adia-te, presente absoluto!
Mais vale não ser que ser assim.
Comprem chocolates à criança a quem
sucedi por erro.
E tirem a tabuleta porque amanhã é
infinito.
Mas tenho que arrumar a mala,
Tenho por força que arrumar a mala,
A mala.
Não posso levar as camisas na
hipótese e a mala na razão.
Sim, toda a vida tenho tido que
arrumar a mala.
Mas também, toda a vida, tenho
ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas,
A ruminar, como um boi que não
chegou a Ápis, destino.
Tenho que arrumar a mala de ser.
Tenho que existir a arrumar malas.
A cinza do cigarro cai sobre a
camisa de cima do monte.
Olho para o lado, verifico que estou
a dormir.
Sei só que tenho que arrumar a mala,
E que os desertos são grandes e tudo
é deserto,
E qualquer parábola a respeito
disto, mas dessa é que já me esqueci.
Ergo-me de repente todos os Césares.
Vou definitivamente arrumar a mala.
Arre, hei-de arrumá-la e fechá-la;
Hei-de vê-la levar de aqui,
Hei-de existir independentemente
dela.
Grandes são os desertos e tudo é
deserto,
Salvo erro, naturalmente.
Pobre da alma humana com oásis só no
deserto ao lado!
Mais vale arrumar a mala.
Fim.
ÁLVARO DE CAMPOS, 4 DE OUTUBRO DE
1930
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