Na vasta praia estou eu só. O mar
Enche do seu salgado (...) o ar
E de seu múrmuro (...) a hora
O sol é pleno como uma franqueza,
O horizonte é uma linha de beleza,
Sem mais que ser só uma linha
agora...
E contudo que lívido, que cego
Que íntimo e nítido desassossego
Me pulsa dentro como um coração!
Que cousa como um tédio, mas mais
forte
Me torna inútil ver tudo isto e a
morte
Como uma obscura e fresca aspiração?
Porque é que, sendo esta hora dum
veludo
De brisas e de luz me sabe tudo
A dever ser uma outra cousa...
Não...
Não é o mar ou o sol ou a brisa
calma
Que enche de angústia estéril a
minha alma
E garras crava no meu coração.
Não... Não é mesmo o claro e azul e
verde
Mistério de tudo isto que me perde
De mim e o próprio corpo me
irrequieta...
Nem ideia de morte, ou dor de vida
Me chama cinza à alma e a faz ferida
Como cravada por tremente seta.
Não... Posso calar nesta hora em mim
O mar imenso e o céu sem fim
E a deserta extensão ao sol da
praia.
Outra é a margem que se vai, diversa
A ânsia que me (...) e me dispersa
E como um negro sol dentro em mim
raia.
Se não houvesse a Pátria, a
Humanidade,
Se a vida e a morte e a dor da
sociedade
Não fossem cruas para o pensamento,
Se (...) não fosse
Um amargor (...) o mel mais doce
Do sonho deste lúcido momento;
Se lá-fora, entre os homens, longe
disto
Não houvesse alma, lutas, e ora um
Cristo
E ora um César, levando obscuras
gentes
A conquistas, revoltas, turbilhão
E sem saberem nunca p'ra onde vão
Sempre agitados, sempre inconvenientes...
Se como poeira ao vento os homens
todos
Não fossem
A terra, o céu, o (...) oceano
Tudo envenena-se de eu ser humano...
Deixei metade da minha alma triste
Com eles, duvidosa entre as suas
lutas
E consciente de quão sem nexo
astutas
Ficasse ao menos a minha alma em
frente
Apenas do Mistério omnipresente
E não vertesse sobre o horror de ver
Que não sabe o que é céu e mar e
terra
A dor de não saber p'ra que é a
guerra
E a paz, e o possuir e o perder...'
Nós não sabemos
Nenhum divino instinto nos aponta
O caminho social, a certa estrada
Do que grandeza ou arte (...),
(Nem sabemos qual é que deve ser)
Nem sabemos o ideal que ter devemos,
Não sabemos querer o que queremos,
Nossas palavras mais (...) de
justiça
Caem sobre os povos e ei-las
transtornadas
Para ficar e (...) e frias espadas
E o mundo (...) numa eterna liça.
Que defender? que combater? Que
qu'rer?
Que ideal formou-nos? Como o tentar
ter?
Para aonde? E por que estrada?
Ninguém sabe,
Ninguém... E tendo tudo isto em mim,
fito
O mar sereno, o céu (...) e infinito
FERNANDO PESSOA, 3 DE AGOSTO DE 1913
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