DOIS EXCERTOS DE ODES
(fins
de duas odes, naturalmente)
I
Vem, noite antiquíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio,
Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de infinito.
Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos
caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para ao
pé das árvores próximas,
Funde num campo teu, todos os campos
que vejo,
Faze da montanha um bloco só do teu
corpo,
Apaga-lhes todas as diferenças que
de longe eu vejo
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem
verde-escuro ao longe,
Todas as casas brancas e com fumo
entre as árvores,
E deixa só uma luz, e outra luz e
mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente
perturbadora,
Na distância subitamente impossível
de percorrer.
Nossa Senhora
Das cousas impossíveis que
procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter connosco ao
crepúsculo, à janela,
Dos propósitos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hotéis
cosmopolitas
Ao som europeu das músicas e das
vozes longe e perto,
E que doem por sabermos que nunca os
realizaremos...
Vem, e embala-nos,
Vem e afaga-nos,
Beija-nos silenciosamente na fronte,
Tão levemente na fronte que nem
saibamos que nos beijam
Senão por uma diferença na alma
Um vago soluço partindo
melodiosamente
Do antiquíssimo de nós
Onde têm raiz todas essas árvores de
maravilha
Cujos frutos são os sonhos que
afagamos e amamos
Porque os sabemos fora de relação
com o que há na vida.
Vem soleníssima,
Soleníssima e cheia
De uma oculta vontade de soluçar,
Talvez porque a alma é grande e a
vida é pequena,
E todos os gestos não saem do nosso
corpo
E só alcançamos onde o nosso braço
chega,
E só vemos até onde chega o nosso
olhar.
Vem dolorosa,
Mater-Dolorosa das Angústias dos
Tímidos,
Turris-Eburnea das Tristezas dos
Desesperados,
Mão fresca sobre a testa em febre
dos Humildes,
Sabor de água sobre os lábios secos
dos Cansados.
Vem, lá do fundo
Do horizonte lívido,
Vem e arranca-me
Do solo de angústia e inutilidade
Onde vicejo.
Apanha-me do meu solo, malmequer
esquecido,
Folha a folha lê em mim não sei que
sina
E desfolha-me para teu agrado,
Para teu agrado silencioso e fresco.
Uma folha de mim lança para o Norte,
Onde estão as cidades de Hoje que eu
tanto amei;
Outra folha de mim lança para o Sul,
Onde estão os mares que os
Navegadores abriram;
Outra folha minha atira ao Ocidente,
Onde arde ao rubro tudo o que talvez
seja o Futuro,
Que eu sem conhecer adoro;
E a outra, as outras, o resto de mim
Atira ao Oriente
Ao Oriente de onde vem tudo, o dia e
a fé,
Ao Oriente pomposo, fanático e
quente,
Ao Oriente budista, bramânico,
sintoísta
Ao Oriente que é tudo o nós não
temos,
Que é tudo o que nós não somos,
Ao Oriente onde, - quem sabe? -,
Cristo talvez ainda hoje viva,
Onde Deus talvez exista realmente e
mandando tudo...
Vem sobre os mares,
Sobre os mares maiores,
Sobre os mares sem horizontes
precisos,
Vem e passa a mão pelo dorso da
fera,
E acalma-a misteriosamente,
Ó domadora hipnótica das coisas que
se agitam muito!
Vem, cuidadosa,
Vem, maternal,
Pé ante pé, enfermeira antiquíssima,
que te sentaste
À cabeceira dos deuses das fés já
perdidas,
E que viste nascer Jeová e Júpiter,
E sorriste porque tudo te é falso e
inútil.
Vem, Noite silenciosa e extática,
Vem envolver na noite manto branco
O meu coração...
Serenamente como uma brisa na tarde
leve,
Tranquilamente como um gesto materno
afagando,
Com as estrelas luzindo nas tuas
mãos
E a lua máscara misteriosa na tua
face,
Todos os sons soam de outra maneira
Quando tu vens.
Quando tu entras baixam todas as
vozes,
Ninguém te vê entrar,
Ninguém sabe quando entraste,
Senão de repente, vendo que tudo se
recolhe,
Que tudo perde as arestas e as
cores,
E que no alto céu ainda claramente
azul
Já crescente nítido, ou círculo
branco, ou mera luz nova que vem,
A lua começa a ser real.
II
Ah o crepúsculo, o cair da noite, o
acender das luzes, nas grandes cidades,
E a mão de mistério que abafa o
bulício,
E o cansaço de tudo em nós que nos
corrompe
Para uma sensação exacta e precisa e
activa da Vida!
Cada rua é um canal de uma Veneza de
tédios
E que misterioso o fundo unânime das
ruas,
Das ruas ao cair da noite, ó Cesário
Verde, ó Mestre,
Ó do "Sentimento de um
Ocidental"!
Que inquietação profunda, que desejo
de outras cousas,
Que não são países, nem momentos, nem
vidas,
Que desejo talvez de outros modos de
estados de alma
Humedece interiormente o instante
lento e longínquo!
Um horror sonâmbulo entre luzes que
se acendem,
Um pavor terno e líquido, encostado às
esquinas
Como um mendigo de sensações
impossíveis
Que não sabe quem lhas possa dar...
Quando eu morrer,
Quando me for, ignobilmente, como
toda a gente,
Por aquele caminho cuja ideia se não
pode encarar de frente,
Por aquela porta a que, se
pudéssemos assomar, não assomaríamos,
Para aquele porto que o capitão do
Navio não conhece,
Seja por essa hora condigna dos
tédios que tive,
Por esta hora mística e espiritual e
antiquíssima,
Por essa hora em que talvez, há
muito mais tempo do que parece,
Platão sonhando viu a ideia de Deus
Esculpir corpo e existência
absolutamente plausível
Dentro do seu pensamento
exteriorizado como um campo.
Seja por esta hora que me leveis a
enterrar,
Por esta hora que eu nem sei como
viver,
Em que não sei que sensações ter ou
fingir que tenho,
Por essa hora cuja misericórdia é
torturante e excessiva,
Cujas sombras vêm de qualquer outra
cousa que não as cousas,
Cuja passagem não roça vestes pelo
chão da Vida Sensível
Nem deixa perfume nos caminhos do
Olhar.
Cruza as mãos sobre o joelho, ó
companheira que eu não tenho nem quero ter,
Cruza as mãos sobre o joelho e
olha-me em silêncio
A esta hora em que eu não posso ver
tu que tu me olhas,
Olha-me em silêncio e em segredo e
pergunta a ti própria
- Tu que me conheces - quem eu
sou...
ÁLVARO DE CAMPOS, 30 DE JUNHO DE
1914
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