SÁ CARNEIRO
Nesse número do Orpheu que há-de ser
feito
com sóis e estrelas num mundo novo.
Nunca supus que isso a que chamam
morte
Tivesse qualquer espécie de
sentido...
Cada um de nós, aqui aparecido,
Onde manda a lei certa e a falsa sorte,
Tem só uma demora de passagem
Entre um comboio e outro,
entroncamento
Chamado o mundo, ou a vida ou o
momento,
Mas seja como for, segue a viagem.
Por isso, embora num comboio
expresso
Seguisses, e adiante do em que vou,
No términus de tudo, ao fim lá estou
Nessa ida que afinal é um regresso.
Porque na enorme gare onde Deus
manda
Grandes acolhimentos se darão
Para cada prolixo coração
Que com seu próprio ser vive em
demanda.
Hoje, falho de ti, sou dois a sós.
Há almas pares, as que se conheceram
Onde os seres são almas (...)
(...)
Como éramos só um falando! Nós
Éramos como um diálogo numa alma.
Não sei se dormes (...)calma.
Sei que, falho de ti, estou só a
sós.
É como se esperasse eternamente
A tua vinda certa e combinada
Aí em baixo, no Café Arcada -
Quase no extremo deste Continente;
Aí, onde escreveste aqueles versos
Do trapézio, do vice-rei - sei eu -
Aquilo tudo que depois no Orpheu
(...)
Ah, meu maior amigo, nunca mais
Na paisagem sepulta desta vida
Encontrarei uma alma tão querida
Às coisas que em meu ser são as
reais.
Não mais, não mais, e desde que
saíste
Desta prisão fechada que é o mundo,
Meu coração inerte é infecundo
E o que sou é um sonho que está
triste.
Porque há em nós, por mais que
consignamos
Ser nós mesmos a sós sem nostalgia,
O desejo de termos companhia -
O amigo enorme que a falar amamos.
FERNANDO PESSOA, 1935
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