Hoje que a tarde é calma e o céu
tranquilo,
E a noite chega sem que eu saiba
bem,
Quero considerar-me e ver aquilo
Que sou, o que é que sou o que é que
tem.
Olho para todo o meu passado e vejo
Que fui quem foi aquilo em torno
meu,
Salvo o que o vago e incógnito
desejo
De ser eu mesmo de meu ser me deu.
Como a páginas já relidas, vergo
Minha atenção sobre quem fui de mim.
E nada de verdade em mim albergo
Salvo uma ânsia sem princípio ou
fim.
Como alguém distraído na viagem
Segui por dois caminhos par a par.
Fui com o mundo, parte da paisagem;
Comigo fui, sem ver nem recordar
Chegado aqui, onde hoje estou,
conheço
Que sou diversos no que informe
estou.
No meu próprio caminho me atravesso.
Não conheço quem fui no que hoje
sou.
Serei eu, porque nada é impossível,
Vários trazidos de outros mundos, e
No mesmo ponto espacial sensível
Que sou eu, sendo eu por estar aqui?
Serei eu, porque todo o pensamento
Podendo conceber, bem pode ser,
Um dilatado e múrmuro momento,
Dos tempos-seres de quem sou o
viver?
FERNANDO PESSOA, 1 DE AGOSTO DE 1931
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