Dorme, fluindo lentamente, a água,
Contudo dorme, fluida lentamente,
Como quem, porque vive, sente mágoa,
Mas, por cansado, sente que não
sente.
As árvores e as ervas da ribeira
Vêem que corre a água adormecida,
E elas também, que um vento irreal
peneira,
Dormem na paz anónima e tremida.
E eu, que ambas coisas perto de
longe olho,
E nas mãos tenho as flores que
colhi,
Lentamente as não vejo e as
desfolho,
E tudo passa e trémulo sorri.
É um dia sucedente a outro dia,
É uma hora antes da hora que há a
seguir.
Que voluntariamente o esqueceria
Se tivesse vontade de o fingir!
Ténue torvelinhar da água branda,
Vago murmúrio quase não ouvido
Das folhas trémulas, que Deusa anda
Tecendo em nós a iniciação do
olvido?
FERNANDO PESSOA, 18 DE AGOSTO DE
1934
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