DACTILOGRAFIA
Traço sozinho, no meu cubículo de
engenheiro, o plano,
Firmo o projecto, aqui isolado,
Remoto até de quem eu sou.
Ao lado, acompanhamento banalmente
sinistro,
O tic-tac estalado das máquinas de
escrever.
Que náusea da vida!
Que abjecção esta regularidade!
Que sono este ser assim!
Outrora, quando fui outro, eram
castelos e cavalarias
(Ilustrações, talvez, de qualquer
livro de infância),
Outrora, quando fui verdadeiro ao
meu sonho,
Eram grandes paisagens do Norte,
explícitas de neve,
Eram grandes palmares do Sul,
opulentos de verdes.
Outrora...
Ao lado, acompanhamento banalmente
sinistro.
O tic-tac estalado das máquinas de
escrever.
Temos todos duas vidas:
A verdadeira, que é a que sonhámos
na infância,
E que continuamos sonhando, adultos
num substracto de névoa;
A falsa, que é a que vivemos em
convivência com outros,
Que é a prática, a útil,
Aquela em que acabam por nos meter
num caixão.
Na outra não há caixões, nem mortes,
Há só ilustrações de infância:
Grandes livros coloridos, para ver
mas não ler;
Grandes páginas de cores para
recordar mais tarde.
Na outra somos nós,
Na outra vivemos;
Nesta morremos, que é o que viver
quer dizer;
Neste momento, pela náusea, vivo na
outra...
Mas ao lado, acompanhamento banalmente
sinistro.
Ergue a voz o tic-tac estalado das
máquinas de escrever.
ÁLVARO DE CAMPOS, 19 DE DEZEMBRO DE
1933
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