DILUENTE
A vizinha do número catorze ria hoje
da porta
De onde há um mês saiu o enterro do
filho pequeno.
Ria naturalmente com a alma na cara.
Está certo: é a vida.
A dor não dura porque a dor não
dura.
Está certo.
Repito: está certo.
Mas o meu coração não está certo.
O meu coração romântico faz enigmas
do egoísmo
da vida.
Cá está a lição, ó alma da gente!
Se a mãe esquece o filho que saiu
dela e morreu,
Quem se vai dar ao trabalho de se
lembrar de mim?
Estou só no mundo, como um pião de
cair.
Posso morrer como o orvalho seca
Por uma arte natural da natureza
solar.
Posso morrer à vontade da
deslembrança,
Posso morrer como ninguém...
Mas isto dói,
Isto é indecente para quem tem
coração
Isto...
Sim, isto fica-me nas goelas como
uma sanduíche de lágrimas...
Glória? Amor? O anseio de uma alma
humana?
Apoteose às avessas...
Dêem-me Água de Vidago que eu quero
esquecer a vida!
ÁLVARO DE CAMPOS, 29 DE AGOSTO DE
1929
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