ELEGIA
NA SOMBRA
Lenta,
a raça esmorece, e a alegria
É
como uma memória de outrem. Passa
Um
vento frio na nossa nostalgia
E
a nostalgia torna-se desgraça.
Pesa
em nós o passado e o futuro.
Dorme
em nós o presente. E a sonhar
A
alma encontra sempre o mesmo muro,
E
encontra o mesmo muro ao despertar.
Quem
nos roubou a alma? Que bruxedo
De
que magia incógnita e suprema
Nos
enche as almas de dolência e medo
Nesta
hora inútil, apagada e extrema?
Os
heróis resplandecem a distância
Num
passado impossível de se ver
Com
os olhos da fé ou os da ânsia.
Lembramos
névoa, sombras a esquecer.
Que
crime outrora feito, que pecado
Nos
impôs esta estéril provação
Que
é indistintamente nosso fado
Como
o sentimos bem no coração?
Que
vitória maligna conseguimos -
Em
que guerra, com que armas, com que armada?
Que
assim o seu castigo irreal sentimos
Colado
aos ossos desta carne errada?
Terra
tão linda com heróis tão grandes,
Bom
sol universal localizado
Pelo
melhor calor que aqui expandes,
Calor
suave e azul só a nós dado
Tanta
beleza dada e glória ida!
Tanta
esperança que, depois da glória,
Só
conheceu que é fácil a descida
Das
encostas anónimas da história!
Tanto,
tanto! Que é feito de quem foi?
Ninguém
volta? No mundo subterrâneo
Onde
a sombria luz por nula dói,
Pesando
sobre onde já esteve o crânio,
Não
restitui Plutão a sob o céu
Um
herói ou o ânimo que o faz,
Como
Eurídice dada à dor de Orfeu;
Ou
restituiu, e olhámos para trás?
Nada.
Nem fé nem lei, nem mar nem porto.
Só
a prolixa estagnação das mágoas,
Como
nas tardes baças, no mar morto,
A
dolorosa solidão das águas.
Povo
sem nexo, raça sem suporte,
Que,
agitada, indecisa, nem repare
Em
que é raça, e que aguarda a própria morte
Como
a um comboio expresso que aqui pare.
Torvelinho
de dúvidas, descrença
Da
própria consciência de se a ter,
Nada
há em nós que, firme e crente, vença
Nossa
impossibilidade de querer.
Plagiários
da sombra e do abandono,
Registramos,
quietos e vazios,
Os
sonhos que há antes que venha o sono
E
o sono inútil que nos deixa frios.
Oh,
que há-de ser de nós? Raça que foi
Como
que um novo sol ocidental
Que
houve por tipo o aventureiro e o herói
E
outrora teve nome Portugal...
(Fala
mais baixo! Deixa a tarde ser
Ao
menos uma externa quietação
Que
por ser fora faça meros doer
Nosso
descompassado coração.
Fala
mais baixo! Somos sem remédio,
Salvo
se do ermo abismo onde Deus dorme
Nos
venha despertar do nosso tédio
Qualquer
obscuro sentimento informe.
Silêncio
quasi! Nada digas! Cala
A
esperança vazia em que te acho,
Pátria.
Que doença de teu ser se exala?
Tu
nem sabes dormir. Fala mais baixo!)
Ó
incerta manhã de nevoeiro
Em
que o Rei morto vivo tornará
Ao
povo ignóbil e o fará inteiro -
És
qualquer coisa que Deus quer ou dá?
Quando
é a tua Hora e o teu Exemplo?
Quando
é que vens, do fundo do que é dado,
Cumprir
teu rito, reabrir teu Templo
Vendando
os olhos lúcidos do Fado?
Quando
é que soa, no deserto de alma
Que
Portugal é hoje, seu sentir,
Tua
voz, como um balouçar de palma
Ao
pé do oásis do que possa vir?
Quando
é que esta tristeza desconforme
Verá,
desfeita a tua cerração
Surgir
um vulto, no nevoeiro informe,
Que
nos faça sentir o coração?
Quando?
Estagnamos. A melancolia
Das
horas sucessivas que a alma tem
Enche
de tédio a noite, e chega o dia
E
o tédio umenta porque o dia vem.
Pátria,
quem te feriu e envenenou?
Quem,
com suave e maligno fingimento
Teu
coração suposto sossegou
Com
abundante e inútil alimento?
Quem
fez que durmas mais do que dormias?
Quem
fez que jazas mais que até aqui?
Aperto
as tuas mãos: como estão frias!
Mãe
do meu ser que te ama, que é de ti?
Vives,
sim, vives porque não morreste...
Mas
a vida que vives é um sono
Em
que indistintamente o teu ser veste
Todos
os sambenitos do abandono.
Dorme,
ao menos, de vez. O Desejado
Talvez
não seja mais que um sonho louco
De
quem, por muito te ter, Pátria, amado,
Acha
que todo o amor por ti é pouco.
Dorme,
que eu durmo, só de te saber
Presa
da inquietação que não tem nome
E
nem revolta ou ânsia sabe ter
Nem
da esperança sente sede ou fome.
Dorme,
e a teus pés teus filhos, nós que o somos,
Colheremos,
inúteis e cansados
O
agasalho do amor que ainda pomos
Em
ter teus pés gloriosos por amados.
Dorme,
mãe Pátria, nula e postergada,
E,
se um sonho de esperança te surgir,
Não
creias nele, porque tudo é nada,
E
nunca vem aquilo que há-de vir.
Dorme,
que a tarde é finda e a noite vem.
Dorme,
que as pálpebras do mundo incerto
Baixam
solenes, com a dor que têm,
Sobre
o mortiço olhar inda desperto.
Dorme,
que tudo cessa, e tu com tudo,
Quererias
viver eternamente,
Ficção
eterna ante este espaço mudo
Que
é um vácuo azul? Dorme, que nada sente,
Nem
paira mais no ar, que fora almo
Se
não fora a nossa alma erma e vazia,
Que
o nosso fado, vento frio e calmo
E
a tarde de nós mesmos, baça e fria -
Como
- longínquo sopro altivo e humano! -
Essa
tarde monótona e serena
Em
que, ao morrer, o imperador romano
Disse:
Fui tudo, nada vale a pena.
FERNANDO
PESSOA, 2 DE JUNHO DE 1935
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