Por entender que este artigo, escrito por um médico, vem destruir a fantasia do João Gaspar Simões e tornar incompreensível o apadrinhamento da Clara Ferreira Alves, - anterior Directora da “Casa Fernando Pessoa”, - e porque ele merece toda a divulgação possível, o coloco neste blogue, criado para homenagear o grande Poeta Universal que é o Fernando Pessoa
Fernando Pessoa,
alcoólico de grau
extremo?
O semanário Expresso
de 5 de Março de 2001 publicou
um livro com a conhecida
biografia de Fernando
Pessoa escrita
por João Gaspar Simões, com
pretácio de Clara
Ferreira Alves, em que este autor
considera o poeta
vítima de grave alcoolismo,
atribuindo inclusivamente
a sua morte a uma cólica
hepática devida a
uma cirrose alcoólica: “um alcoólico
inveterado,
vítima até às últimas consequências,
morais e físicas,
do excesso da bebida,
...principiava a
sentir a intoxicação
física que as permanentes
bebedeiras
lhe iam
provocando na constituição
débil... por anos
de mau passadio,
de deambulação boémia
de tasco
em tasco”. Esta narrativa
de Gaspar
Simões sobre o alcoolismo
de
Pessoa, de pendor
claramente
pejoratívo, fantasioso,
e caluniador
assim como a nomenclatura
médica
completamente disparatada
da causa
da sua morte, passaram,
desde cedo,
a macular o nome
do poeta, de forma
indelével e
vulgarizada.
Um
estudo sobre o tema
Foi a evidente
falta de fundamentação
desta opinião, claramente
malévola e
infundada, que
me levou a efectuar
um trabalho de investigação
intitulado “O Hábito
de Beber no
Contexto Existencial
e Poético de
Fernando Pessoa”,
com que concorri
ao Grande Prémio
Bial de Medicina
de 1994, tendo sido
premiado, por
um Júri de 5
catedráticos das nossas
Faculdades de Medicina,
entre 49
concorrentes, para
além dos dois
Primeiros Prémios,
com uma das 4
Menções
Honrosas. Posteriormente
a Fundação Bial
lançou uma edição
desse meu livro que
foi reeditado
em 2002 pela editora
Livros
Horizonte, com o
título “Fernando
Pessoa - A Penumbra
do Génio”,
em que desenvolvo
o mesmo
tema. Aproveito para
revelar que
as ilações deste
meu trabalho
tiveram a aprovação
expressa de
numerosos e prestigiados
escritores
pessoanos, como José
Blanco, autor
do seu prefácio,
Eduardo Lourenço.
Teresa Rita Lopes,
Moitinho de
Almeida, Robert Bréchon,
Richard
Zenith, Manuela Nogueira
Murteira,
Sobrinho Simões,
entre outros.
Depoimentos
contrários
a
um alcoolismo imoderado
O primeiro passo
para investigar a
veracidade das estranhas
deduções de
Gaspar Simões, seria
necessariamente,
compará-las com
outras informações
provenientes da larga
convivência do
poeta com os seus
contemporâneos
mais chegados, tanto
mais que
Gaspar Simões só
morou em Lisboa
nos últimos 3 meses
da sua vida.
assim, encontramos
numerosos
testemunhos de pessoas
que
conviveram com Fernando
Pessoa
durante largos espaços
de tempo,
afirmando, sem sombra
de dúvida,
que embora bebendo
um pouco,
talvez para manter
a inspiração
poética e a dedicação
ao trabalho
comercial, nunca
foi visto com os
mínimos sinais de
excesso de ingestão
alcoólica, mantendo
invariavelmente
um porte impecável,
afável, esmerado
respeitável e
distinto.
Freitas e Costa,
primo de Pessoa
escreveu um livro
intitulado “Notas
a uma biograÍìa romanceada”
em
que contesta
desenvolvidamente os
exageros de Gaspar
Simões sobre o
alcoolismo do poeta.
Jaime Neves, médico,
seu primo,
perguntou um dia
a Henriqueta
Madalena, irmã
do poeta: tu que falas
com toda essa gente,
porque não
lhes dizes que nunca
ninguém o viu
embriagado?
Augusto Ferreira
Gomes, seu amigo
e companheiro de
longa data,
escreveu: “Bebia
muito bem. Daí
porém ao abandalhamento
como
quer o seu biógrafo,
talvez muito
lamentoso de que
ele não tivesse
acabado numa valeta
como o põe,
porque isso lhe calhava
mal ao jeito
do personagem
que criou, meu Deus
que
diferença!... e se nunca foi o
alcoólico vencido
pelo vício, como
ele também quer muito
menos foi
o homem débil
que se deixava levar
pelos
acontecimentos”.
Também os seus patrões
Moitinho
de Almeida, pai
e filho, e Martins da
Hora, assim como
a sua colega de
trabalho, Maria
Ferreira do Amaral,
todas pessoas com
quem conviveu
longos anos, são
peremptórias em
afirmar a sua
permanente eficiência
e a sua constante
aparência de
sobriedade,
dignidade e compostura.
Mas mesmo que se
admita que
Fernando Pessoa bebia
com algum
excesso, deveria
ser considerado,
pela caracterização
moderna
do alcoolismo,
apenas como um
bebedor moderado,
possuidor
de tolerância sem
dependência,
isto é, sem sinais
psíquicos, quer
por consumo
excessivo de álcool,
quer por abstinência.
Por outro
lado, também não
se encontra
nele evidência de
sinais orgânicos
dependentes do alcoolismo,
como
desnutrição, insuficiência
hepática, ou
sintomas
neurológicos, (visíveis nas
fotografias como
magreza acentuada
e aumento de
volume do abdómen
ou detectáveis em
alterações
caligráficas). Alem
de que a sua
produção literária
nos últimos anos e
meses da sua vida,
pela sua extensão,
genialidade e estilo
(incluindo a
sua grande obra “A
Mensagem”),
representa prova
iniludível da
conservação de completa
integridade
física e psíquica.
O
factor simulação
Uma faceta que
com certeza
contribuiu para
a fama de alcoólico
de Fernando Pessoa
foi a sua
tendência, várias
vezes confessada
ao longo de toda
a sua vida e da sua
obra, de um pendor
especial para
a blague e para a
encenação: “...
Desde que tive consciência
de mim
próprio, apercebi-me
que tinha uma
tendência inata para
a mistificação,
Para a mentira artística”,
como
exprime no seu
verso:” O poeta é um
fingidor...”. E
exibiu esta tendência
em numerosos
passos da sua
poesia, assim como
na repetição de
episódios de simulação
de excessos
alcoólicos, como
na desculpa de que
estava embriagado
quando satirizou
o acidente de Afonso
Costa, a
fotografia a beber
numa taverna com
o dístico “Em flagrante
delitro”, as
imitações de
ébrio ao chegar a casa
perante os sobrinhos,
a desculpa de
que estava bêbado
para não receber
uma visita, o cumprimento
para
uns familiares -
sou o vosso primo
bêbado, etc. parecendo
até divertiria
imenso a espalhar
a fama de
viciado pelo
álcool, com que brindou
os seus contemporâneos
e futuros
admiradores e
detractores.
A
causa da morte de Fernando
Pessoa
Em 29 de
Novembro de 1935, uma
sexta-feira, ao anoitecer,
estando
em sua casa na Rua
Coelho da
Rocha, Pessoa teve
uma súbita e
intensa dor abdominal,
sendo pouco
depois levado em
ambulância para
o Hospital de S.
Luís dos Franceses,
onde faleceu no dia
seguinte, sábado,
por volta das 20
horas.
Talvez por ser fim
de semana não
foi efectuado
Boletim Clínico, sendo
apenas registado
o seu internamento
no livro de “Entradas
e Saídas,
onde constam as respectivas
datas
de admissão e de
falecimento, os
honorários, o nome
do Dr. Jaime
Neves como médico
assistente (o
médico do
hospital talvez estivesse de
folga), assim como
o diagnóstico de
“Cólica Hepática”,
mas não a causa da
morte (registada
na 5" Conservatória
do Registo Civil
de Lisboa como
“Obstrução intestinal”).
A primeira divulgação
de “Cólica
Hepática devida a
Cirrose Alcoólica”,
como causa da morte
de Pessoa,
aparece na biografia
escrita por
Gaspar Simões, sem
que se perceba
como ele chegou a
esta conclusão,
visto que tal denominação
não tem
nenhum sentido
em terminologia de
clínica médica. Assim,
a cólica hepática
deve-se a litíase
(pedra) da vesícula,
não tendo qualquer
conexão com a
cirrose alcoólica
e por outro lado, nem
uma nem outra destas
situações (nem
a obstrução intestinal),
na ausência
de complicações,
são causa de morte
em 24 horas. Daí
que tenhamos de
admitir que se esta
dedução partiu
do Dr. Jaime Neves,
ou ele não
tinha formação
de clínico ou as suas
palavras foram mal
interpretadas.
As entidades que
actualmente podem
ser consideradas
no diagnóstico
diferencial de um
quadro de dor
abdominal aguda,
seguida de morte
quase imediata como
aconteceu
com Fernando Pessoa,
são muito
numerosos, embora
se possa suspeitar
de pancreatite aguda
necrosante,
por poder ocorrer
em casos de
alcoolismo mesmo
moderado e não
necessariamente extremo,
como o
que pretenderam
atribuir ao poeta,
mas também devido
a outras causas
como litíase biliaar
hiperlipémia e
mesmo sem causa aparente
(forma idiopática).
No entanto, outras
causas a ponderar
permite o mesmo
quadro poderiam
ser por exemplo,
rotura de aneurisma
da aorta, isquémia
mesentérica ou lnfarto
posterior
do miocárdio, de
modo que apenas
se pode afirmar actualmente,
ser
absolutamente impossível
determinar
com certeza, qual
a entidade clínica
responsável pela
morte de Fernando
Pessoa.
Conclusão
O ultrajante e fictício
enxovalho de
alcoólico em último
grau, lançado sobre
o nosso maior poeta
da modernidade,
provavelmente originado
numa
espécie de despeito
contra a sua
impressionante
mentalidade, repleta
de genialidade, ironia
e altivez, já não
é praticamente
susceptível de ser
apagado
completamente, por ter
sido aceite por uma
imensidade de
cultores e pelo público
em geral e
continuar a ser divulgado
com deleite
pela comunicação
social. Contudo,
justificam-se, pelo
menos, as tentativas
da criação no ambiente
cultural
português, de correntes
de opinião,
destinadas a impedir
a ampliação desse
aviltante e
infundado estigma , não só
como acto de justiça
para com a
gloriosa memória
do poeta, como de
respeito pela sua
qualidade de agente
incomparável do engrandecimento
da identidade
nacional.
Jornal
Português de Gastrenterologia
Sociedade
Portuguesa de Gastrenterologia
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