ORFEU
Como se ser real fosse dormir
E existir uma noite, a Natureza
Estremeceu de o ouvir
Tocada por um sol vindo a florir
Do abismo da Beleza.
E cousa a cousa, despertando, a face
Da noite e terra se transfigurou
E como caem máscara ou disfarce
Seu mudo ser real abandonou.
E uma outra vida, que não é a vida,
Despertou no disperso coração
Da terra indefinida
Da indefinida escuridão.
Portas se abriram no existir das
cousas,
Nos seres como que se ergueram
lousas,
E outra realidade e outra visão
Desabrochou na árvore e folhas
ansiosas
Das cousas como são.
Tocadas pelo oculto dom de um canto
Que pela dor e o amor ansioso achou
O segredo primevo do mistério,
O verbo com que abriu o cofre santo
Em que o (...)
O Destino guardou,
Ondas e ondas de astrais realidades,
Insonhados possíveis murmurando
Rompem de todas as realidades
E num horror de apocalipse abrindo
Desconhecidas almas revelando
E deixando as raízes com que são
Visíveis prisioneiras da matéria,
As árvores em ansiosa confusão
Vão seguindo aonde a voz
Ondula incerta e aérea,
Paira vaga e veloz.
E as feras rejeitando essa raiz
De bruteza que as prende à terra e
ao mal
Novos passados (...) feliz
Erguem a voz que diz
O que não ouvem, salvo o coração,
Pela estrada em que é margem o real
E solo a emoção.
E ao longe onde, entre os homens, há
o sono
Cada um sonha e, ao acordar, dirá
Que se sentiu sonhar e não recorda
(...)
FERNANDO PESSOA, 13 DE JULHO DE 1921
Sem comentários:
Enviar um comentário