AMUN-RA
Meu ser vive na noite e no
outramente,
Vestígio e esteira de onde o barco
foi...
Nada é, tudo se outra. A consciência
É o vácuo entre o que somos e Ele é.
E a Natureza é a sombra que se vê
Encher de luz o vácuo e a luz é ciência.
Enche o vácuo de temor
Enche de movimento a inexistência.
Mas onde a luz que é Ele e a
intermitência?
Onde está o o universo onde se lê
Com a voz da Razão verbo de fé...
Onde é que o Nada encontra a
consistência?
Paro em mim mesmo, exausto de pensar-me,
No que sou, Tu, Ser que o ser enche
e cobre,
E o silêncio é ouvir-te e renovar-me
Oiço e um horror me os olhos da alma
vasa.
E a Sua agonia é um manto sobre
O não haver senão a Sua asa.
Dentro d'Ele seu ser de si
extravasa.
Foi antes do Não-ser de onde Deus
veio,
Na antiga Noite, antes de a noite
ser,
Que no abismo de Ele teve ver
O Espírito que olha e está mo meio.
E à roda, fluido de anterior anseio,
Começo abstracto de poder haver
Em círculos concêntricos de ter
Concebeu-se o universo, a si alheio.
Mas o Fantasma guarda a porta
ausente,
E inda haveria mais que eternos céus
Que passar, antes que ter de ser
fosse ente.
Então abriu a porta e Ele era os
seus.
Amanheceu-se em flor no inexistente.
Sem ser morte. A sua morte é Deus.
FERNANDO PESSOA, 28 DE MARÇO DE 1930
Sem comentários:
Enviar um comentário