Os mortos! Que prodigiosamente
E com que horrível reminiscência
Vivem na nossa recordação deles!
A minha velha tia na sua antiga
casa, no campo
Onde eu era feliz e tranquilo e a
criança que eu era...
Penso nisso e uma saudade toda raiva
repassa-me...
E, além disso, penso, ela já morreu
há anos...
Tudo isto, vendo bem, é misterioso
como um lusco-fusco...
Penso, e todo o enigma do universo
repassa-me.
Revejo aquilo na imaginação com tal
realidade
Que depois, quando penso que aquilo
acabou
E que ela está morta,
Encaro com o mistério mais
palidamente
Vejo-o mais escuro, mais impiedoso,
mais longínquo
E nem choro, de atento que estou ao
terror da vida...
Como eu desejaria ser parte da
noite,
Parte sem contornos da noite, um
lugar qualquer no espaço
Não propriamente um lugar, por não
ter posição nem contornos,
Mas noite na noite, uma parte dela,
pertencendo-lhe por todos os lados
E unido e afastado companheiro da
minha ausência de existir...
Aquilo era tão real, tão vivo, tão
actual!...
Quando em mim o revejo, está outra
vez vivo em mim...
Pasmo de que coisa tão real pudesse
passar...
E não existir hoje e hoje ser tão
diverso...
Corre para o mar a água do rio,
abandona a minha vista,
Chega ao mar e perde-se no mar,
Mas a água perde-se de si-própria?
Uma coisa deixa de ser o que é
absolutamente
Ou pecam de vida os nossos olhos e
os nossos ouvidos
E a nossa consciência exterior do
Universo?
Onde está hoje o meu passado?
Em que baú o guardou Deus que não
sei dar com ele?
Quando o revejo em mim, onde é que o
estou vendo?
Tudo isto deve ter um sentido -
talvez muito simples -
Mas por mais que pense não atino com
ele.
ÁLVARO DE CAMPOS, 13 DE DEZEMBRO DE
1914
Sem comentários:
Enviar um comentário